Com mais ou menos floreados, os cosméticos sempre se arvoraram em Ponce de León – o espanhol do século XVI que teria descoberto a mítica fonte da juventude. Anos após ano, cremes e poções prometeram às mulheres beleza, viço, sensualidade e, por implicação, amor. Independentemente dos méritos dos produtos, do ponto de vista comercial a coisa resultou (com trocadilho) …lindamente. Afinal, a esperança é mais difícil de deitar fora do que um bumerangue velho.
Porém, o marketing da Dove reciclou o pregão. Criou a «Campanha pela Beleza Real». Segundo a empresa, trata-se «de uma iniciativa global, ainda no início, para catalisar e a ampliar a discussão e a definição da beleza». Ou seja: a Dove começou a assobiar a ideia (música para os ouvidos de inúmeras mulheres) de que a beleza é uma quimera fabrica pela midia – e tenta aposentar o padrão, delineando modelos plurais de beleza.
Não, não se trata de realçar a formosura interior – como disse o outro, «beleza interior é lingerie». A partir de agora, somos todos belos. Já há meses, a Dove lançara um creme com cartazes de «mulheres autênticas» – atraentes, mas de vários tamanhos (de Liliput a Brobdingnac). E anunciara produtos para os cabelos com centenas de mulheres de perucas louras idênticas (descritas desdenhosamente como «o género que aparece nas revistas»), que arrancavam as jubas artificiais e celebravam o seu cabelo genuíno (meticulosamente penteado e milimetricamente tingido). A revista «Advertising Age» (a bíblia do setor) proclamou que a campanha minava «décadas de publicidade, explicando às mulheres que estas são lindas como são». Mas a Dove aprofundou o safanão no paradigma, com um vídeo on-line de 75 segundos, («Evolution»), que introduz uma mulher aparentemente comum. Em 20 segundos, maquiadores e cabeleireiros fazem por ela o que a fada madrinha fez pela Cinderela: floresce uma beldade de olhos de aurora boreal, cabelos em cascata cristalina, feições esculpidas em mármore e pele de alperce. Depois entram em cena o mouse do computador e o abracadabra digital. Por fim, a Vénus nascida daquela concha postiça povoa outdoors com o carisma mesmerizante da Gioconda. A legenda: «Não admira que a nossa noção da beleza seja distorcida». Até ontem, o vídeo atraíra 10 milhões de visitantes nos YouTube (e no www.campaignforrealbeauty.com).
O conceito de beleza é assim tão fixo – ou, ao contrário, tão camaleônico? Já o grego Hesíodo gemia: «Quem é belo é querido, quem não é belo não é querido». O que desencadeou a Guerra de Tróia? Uma espécie de concurso de Miss Universo, vencido por Helena (claro que houve falcatrua). Outro ponto sugestivo: mesmo com os metrossexuais, a cosmética continua um santuário do segundo sexo – e repleto de alçapões. Como suspirou Agatha Christie: «A vida é dura. Os homens não gostarão de nós se não formos belas – e as mulheres não gostarão se o formos».
A Dove radicalizou a campanha com um anúncio em curso na TV portuguesa (e nos cartazes de rua), que mostra cinquentonas nuas em pelo. O slogan é veemente: «Dove is pró-age, not anti-age». Uma revolução copernicana? Até agora, envelhecer era como ser-se punido cada vez mais por um crime que não se cometeu – e o sonho secreto dos adultos correspondia a uma espécie de adolescência vitalícia. Um anseio aliás recente, como indica uma novela de Ian McEwan, ambientado em 1962: «Aquela ainda era a época – prestes a terminar – em que ser jovem era um estorvo social, uma marca de irrelevância, uma situação ligeiramente embaraçosa para a qual o casamento era o início de uma cura».
Ora, envelhecer não é assim tão mau, quando se pensa na alternativa... (e, quando somos caquéticos e encarquilhados, ninguém nos vem chatear com seguros de vida). E estamos a envelhecer mais. Até 2050, a esperança da vida das portuguesas (hoje de 79,9 anos) saltará para 84,7 anos. (A dos homens, hoje nos 72,9 anos, avançará para os 79.) No passado, a longevidade aumentou devido a progressos básicos, como o acesso universal a vacinas ou à água potável. Agora, será alargada graças a profilaxia através do ADN, ou cirurgias dantes tecnicamente impossíveis. O «papy boom», o choque demográfico que o envelhecimento da população provocará no futuro imediato (contraponto ao baby boom pós-II Guerra), terá um impacto não equacionado na economia, afetando os sistemas de aposentadoria. Comemorar o centésimo aniversário, atualmente privilégio de 0,01 por cento da população lusa, será uma façanha bem mais comum em 2050 (credo, imaginem quantos Manoéis de Oliveira farão filmes chatérrimos aos cento e muitos!). De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o número de centenários no planeta rondará os 2,2 milhões, 15 vezes mais do que hoje. Bom, quando ouço pessoas a discutir o controlo da natalidade, lembro-me sempre de que fui o quinto. Contudo, convém não esquecer de que a ordem divina ‘Crescei e Multiplicai-vos» foi dada quando a população mundial consistia em duas pessoas.
A Dove gera celeuma. Uma jornalista, Alex Kuczynski, publicou um livro-réplica: «Beauty Junkies». Alex defende as cirurgias, o Botox, as lipoaspirações. E ruge que as plásticas são um novo feminismo e um novo acivismo político. A argumentista Nora Ephron (de «Sleepless In Seattle» e «Um Amor Inevitável») contra-atacou com uma sátira: «I Feel Bad About My Neck» (top-ten do «New York Times»), onde, todavia, admite que as mulheres «precisam» de pintar os cabelos.
Haja saúde? Se há poucas gerações o flagelo mais temido era a fome, o maior fantasma dos países ricos é agora a obesidade. As top-models, magras como hologramas, estão a sendo intimadas a se empanturrarem ao menos com uma azeitona por dia – e só se recusam aquelas cujo cérebro é do tamanho de uma ervilha. Para a esteticista Lurdes Jesus, as dietas da moda, que baniam clãs inteiros de alimentos como serial-killers, perderam credibilidade, Hoje, os especialistas aconselham a não descartar carboidratos, gorduras e proteínas. Na hora H, o próprio ovo frito foi salvo da cadeira elétrica.
Em «Survival of the Prettiest», Nancy Etcoff parte a loiça das ilusões: a beleza realmente existe e, pior ainda, a desnaturada Mãe Natureza a distribui de forma desigual. Até os bebês, quando lhes mostram fotos de desconhecidos, fixam as caras que os adultos consideram mais belas. A beleza não é uma mera ficção social, e nem toda a moça é bonita da maneira que é. Como o resto da loteria genética, a beleza é injusta e fortuita. Toda a gente fica aquém da perfeição – mas enquanto alguns são limítrofes, outros jazem nos antípodas. Como grunhiu Freud, «anatomia é destino». Os parâmetros piraram? Umberto Eco, na «História da Beleza», diz que no século XXI reinará o ecumenismo: «Trata-se de ensinar a interpretar o mundo com olhos diferentes, a gozar o regresso a modelos arcaicos ou exóticos». Talvez, mas é provável que continuem a vingar certas regras. Como o paralelo entre o whisky e os seios de uma mulher: um é pouco, três é de mais. Se ficará mais difícil definir o bom gosto? Depende. Como sempre, foleiro é perguntar o que é chique. E chique é não responder. Afinal, a moda é aquilo que seguimos quando não sabemos quem somos. E, como confessou Coco Chanel, «a moda é feita para passar de moda.»
Numa conferência sobre manipulações biológicas, ouvi uma filósofa jurar a pés juntos que jamais faria uma plástica nem pintaria o cabelo. Mas ela admitiu que pagaria qualquer preço para ter mais 15 pontos de QI. Bem, como suponho que esteve implícito neste texto, parece que a verdadeira confiança não depende da beleza, mas exige autoconhecimento – a mais difícil forma de conhecimento…
(Artigo publicado na "Única", revista do semanário "Expresso")
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