Sexta-feira, 11 de Junho de 2010

VIVA LA MUERTE?

                        Roberto Bolaño é um caso bicudo. Chateia que se torne um best seller post mortem (ou quando desenganado) e pela sua vida errática, errada ou certa. Na actual idolatria em redor dele, há muito de modismo e necrofilia. De fantasia romântica, ao mesmo tempo mórbida e delicodoce, que o chileno apátrida decerto renegaria. Quantos realmente chegarão ao fim de 2666? Por outro lado, não haverá snobismo em repudiar, com pele de galinha, a mera popularidade (neste caso, pelo menos, literariamente justa)? Deixar o veredicto à posteridade é sempre uma decisão judiciosa. Mas, pensando bem, o que é que posteridade já fez por nós?

                         Convenhamos: a auréola de "mártir da literatura" é um bocado pirosa. Porém, milhões de vezes Bolaño vender milhões, do que essas celebridades televisivas (célebres por serem famosas) venderem biliões de exemplares de romances que chegam às editoras com 50 páginas e saem com 500. Sim, claro que há excepções – para citar apenas duas: Rodrigo Guedes de Carvalho (que não precisa de ajuda para escrever decentemente) e José Rodrigues dos Santos (nenhum ghost writer escreveria tão mal).

                        A “biografia” de Bolaño é o material de que as lendas literárias são feitas: nasceu em Santiago, filho de um camionista (pugilista nas horas vagas!) com uma professora. Músculos + Miolos. Saiu apenas à mãe: disléxico, vítima pioneira do que então ainda não se chamava bullying, um ET em qualquer parte do Universo. Há até dubiedades nebulosas: uns (incluindo ele próprio, no conto Cartão de Dança) proclamam que estava no Chile quando Pinochet deu o golpe sem misericórdia, que foi preso e sobreviveu por um triz. Amigos dele confidenciaram ao New York Times que, naquela altura, Bolaño laureava a pevide no México, na boa.

                        Morou em El Salvador (pessoalmente, só vendo acredito na existência de El Salvador). Depois, a montanha-russa - ou comboio-fantasma - do costume: lavador de pratos (o que faço todos os dias, sem falar nos talheres), homem do lixo (que produzo diariamente, sem autocrítica), funcionário de um parque de campismo (eu apenas dou barracas), etc..

                        O nascimento do filho tornou-o “responsável” – o que é um bocadinho, digamos, burguês (mas eu sou o pai mais burguês do mundo, só que sem o capital). Cunhou esta frase tocante mas imprevidente: “O meu único país são os meus filhos” (não contes com a vice-versa, meu caro) . Zangou-se com Isabel Allende, o que é louvável, e foi defendido por Ariel Dorfman, o que é menos meritório. Morreu de uma “doença hepática”, depois de tsunamis de álcool e heroína, diagnóstico que tanto Villa-Matas como a viúva refutam. (Quando morrer, quero que os meus amigos e as minhas viúvas jurem a pés juntos que parti todo pujante!)

                        O melhor é lê-lo. Quanto a mim, apraz-me o pedantismo sardónico de 2666. À páginas tantas, dois personagens tagarelam sobre fobias, e nada menos que 31 delas são meticulosamente catalogadas. Outra passagem ocupa-se de erros canhestros cometidos por escritores, e treze deles são apontados, como este, do francês Alphonse Daudet: “O duque apareceu seguido do seu séquito, que ia à frente”.

                        Já o vídeo que reproduzo vale por si próprio.

tags:
publicado por otransatlantico às 12:17
link do post | comentar | favorito
2 comentários:
De Nora a 11 de Junho de 2010 às 17:10
Como sempre fantástico , mas essa historia não é de outra pessoa? Se é que me entende...
De Anónimo a 27 de Junho de 2010 às 23:02
O vídeo é realmente muito bom, há muito da poesia dele. Agora seu texto mostra não só o Bolaño como também o artista longe da pátria,
e a busca do amor. Paulo, seu humor e o grande conhecimento que tem sobre a obra dele ficam perfeitamente bem no texto.

Comentar post

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Setembro 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
30

.posts recentes

. ...

. E AGORA, COM VOCÊS, HITLE...

. “CONSIDEREI ESCREVER UM R...

. CLARO QUE ELE ADORA PITBU...

. PASSAGEM PARA A ÍNDIA

. O MESTRE MAGISTRAL

. MACACO É A SUA AVÓ!

. A MENSAGEM NUMA GARRAFA

. ALTA COSTURA E ALTA CULTU...

. AGENTE FINO É OUTRA COISA

. TREVAS AO MEIO-DIA

. ALICE NO PAÍS DAS MARAVIL...

. O TABACO SALVA!

. PINTAR O INSTANTE

. LEVANTADO DO CHÃO

. VAN GOGH PINTAVA O CANECO

. FAMA E INFÂMIA

. CASAIS DE ESCRITORES: PAL...

. O DONO DA VOZ

. LIVROS? DEUS ME LIVRE! 1 ...

. CHURCHILL E OS CHARUTOS

. O IMPACIENTE INGLÊS

. ENTREVISTA JAVIER CERCAS

. OSLO QUEBRA O GELO

. O APOLO DIONISÍACO

. O PAI DO SNOOPY

. O CACHIMBO PENSANTE

. ÇA VA?

. TRÊS ALEGRES TIGRES

. O ARCANJO OBSCENO

. RESORT 1 ESTRELA (NO PEIT...

. JACQUES, LE FATALISTE

. HITLER, MEU AMORZINHO

. O ETERNO RETORNO DO ETERN...

. ENTREVISTA: ALI SMITH

. O BARDO DO FARDO E O TROV...

. A MÚSICA DAS ESFERAS IV

. ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA D...

. SEXO E OUTRAS COISAS EMBA...

. ALI E ALÁ

. VIVA LA MUERTE?

. O BELO MALDITO

. REPERCUSSÃO DESTE BLOG!

. DEBAIXO DO VULCÃO

. PUSHKIN, O EMBAIXADOR E E...

. A ÚLTIMA CEIA DO MODERNIS...

. MAILER, VIDAL, CAVETT

. O REI DESTA SELVA VAI NU

. QUEM TEM K SEMPRE ESCAPA

. ENTREVISTA UMBERTO ECO

.arquivos

. Setembro 2011

. Abril 2011

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

.tags

. todas as tags

.links

.subscrever feeds