Roberto Bolaño é um caso bicudo. Chateia que se torne um best seller post mortem (ou quando desenganado) e pela sua vida errática, errada ou certa. Na actual idolatria em redor dele, há muito de modismo e necrofilia. De fantasia romântica, ao mesmo tempo mórbida e delicodoce, que o chileno apátrida decerto renegaria. Quantos realmente chegarão ao fim de 2666? Por outro lado, não haverá snobismo em repudiar, com pele de galinha, a mera popularidade (neste caso, pelo menos, literariamente justa)? Deixar o veredicto à posteridade é sempre uma decisão judiciosa. Mas, pensando bem, o que é que posteridade já fez por nós?
Convenhamos: a auréola de "mártir da literatura" é um bocado pirosa. Porém, milhões de vezes Bolaño vender milhões, do que essas celebridades televisivas (célebres por serem famosas) venderem biliões de exemplares de romances que chegam às editoras com 50 páginas e saem com 500. Sim, claro que há excepções – para citar apenas duas: Rodrigo Guedes de Carvalho (que não precisa de ajuda para escrever decentemente) e José Rodrigues dos Santos (nenhum ghost writer escreveria tão mal).
A “biografia” de Bolaño é o material de que as lendas literárias são feitas: nasceu em Santiago, filho de um camionista (pugilista nas horas vagas!) com uma professora. Músculos + Miolos. Saiu apenas à mãe: disléxico, vítima pioneira do que então ainda não se chamava bullying, um ET em qualquer parte do Universo. Há até dubiedades nebulosas: uns (incluindo ele próprio, no conto Cartão de Dança) proclamam que estava no Chile quando Pinochet deu o golpe sem misericórdia, que foi preso e sobreviveu por um triz. Amigos dele confidenciaram ao New York Times que, naquela altura, Bolaño laureava a pevide no México, na boa.
Morou em El Salvador (pessoalmente, só vendo acredito na existência de El Salvador). Depois, a montanha-russa - ou comboio-fantasma - do costume: lavador de pratos (o que faço todos os dias, sem falar nos talheres), homem do lixo (que produzo diariamente, sem autocrítica), funcionário de um parque de campismo (eu apenas dou barracas), etc..
O nascimento do filho tornou-o “responsável” – o que é um bocadinho, digamos, burguês (mas eu sou o pai mais burguês do mundo, só que sem o capital). Cunhou esta frase tocante mas imprevidente: “O meu único país são os meus filhos” (não contes com a vice-versa, meu caro) . Zangou-se com Isabel Allende, o que é louvável, e foi defendido por Ariel Dorfman, o que é menos meritório. Morreu de uma “doença hepática”, depois de tsunamis de álcool e heroína, diagnóstico que tanto Villa-Matas como a viúva refutam. (Quando morrer, quero que os meus amigos e as minhas viúvas jurem a pés juntos que parti todo pujante!)
O melhor é lê-lo. Quanto a mim, apraz-me o pedantismo sardónico de 2666. À páginas tantas, dois personagens tagarelam sobre fobias, e nada menos que 31 delas são meticulosamente catalogadas. Outra passagem ocupa-se de erros canhestros cometidos por escritores, e treze deles são apontados, como este, do francês Alphonse Daudet: “O duque apareceu seguido do seu séquito, que ia à frente”.
Já o vídeo que reproduzo vale por si próprio.
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