Domingo, 24 de Outubro de 2010

CLARO QUE ELE ADORA PITBULLS

 

 

 

Antes de Dashiell Hammett publicar O Falcão de Malta em 1930, o assassino dos romances policiais podia não ser o mordomo, mas este era sempre suspeito. A vítima era uma oficial reformado da Marinha britânica ou algo assim, simpático e gagá. E o detective era um snob que fumava cachimbo, jogava xadrez ou cultivava begónias. O crime ocorria numa cotagge, geralmente na biblioteca, e o criminoso, ao escapulir pela janela, espezinhava os arbustos e imprimia pegadas na relva com tal veemência que até o inspector Closeau seria capaz de segui-las – porque o assassino usava uma perna de pau e, no outro pé, um sapato número 48. O detective disfarçava-se de fumador de ópio e se embrenhava nos antros de Londres para achar a pessoa que, como a Cinderela, correspondesse àquela descrição.

Exagero, claro. O romance policial clássico que os ingleses produziram entre 1880 e 1930 inclui obras notáveis. Mas Hammet injectou realidade no género (o crime não era um hobby, mas uma profissão, e era praticado por uma razão concreta, ainda que passional, e não para alternar com uma partida de bridge). Depois vieram Raymond Chandler (o Proust do policial), Elmore Leonard e James Ellroy. Sou um leitor omnívoro (dos poetas metafísicos do século XVII aos metafísicos alemães propriamente ditos) – mas admito que tenho um forte fraquinho pelo thriller. Por isso calculem a minha alegria ao entrevistar, pessoalmente, James Ellroy. Infelizmente, vi logo que o prazer não era recíproco.

O escritor tem 63 anos, mas aparenta mais. É esguio e elegante, quase janota, como um Tom Wolfe amarfanhado. Exalava crispação por todos os poros. Adicionei a diplomacia à verdade ao proclamar-me “um grande fã. É uma honra conhecê-lo”. Ele reagiu como se eu tivesse dito que estava a chover ou que eram três da tarde. Sentámo-nos e liguei o gravador, que Ellroy fitou como se fosse uma substância saída de algum intestino.

Achei aconselhável começar por um ângulo ameno, para desanuviar. “Sei que, há muito tempo, trabalhou como caddy…” Ele grunhiu, efusivamente: “Sim”. Perseverei: “Aprendeu a jogar golfe? Aprecia algum desporto?”. “Não.” Era evidente que a negativa abrangia as duas perguntas (e muitas das próximas), e que ele considerava uma entrevista uma modalidade de desporto.

Bem, era óbvio que o meu interlocutor estava a evoluir de descontente para furioso. Examinei-me de esguelha: teria a braguilha aberta? Uma coisa verde nos dentes? Nada. A minha intenção ao invocar o biscate do golfe era pô-lo a falar sobre a sua “estação no Inferno”: na adolescência, a mãe dele foi assassinada, expulsaram-no da escola e de casa, dormiu em parques e sob viadutos, pilhou lojas de conveniência, invadiu lares para surrupiar cuecas femininas, tornou-se alcoólico. Depois veio a literatura, a sublimação, a redenção: tinha 30 anos quando publicou o primeiro livro. Era aí que eu queria chegar. Tudo bem. Bastava de questiúnculas.

“Intitulou quatro dos seus romances O Quarteto de Los Angeles, culminando no White Jazz, que acaba de sair em Portugal. Inúmeras das suas obras se desenrolam na mesma cidade. Porém, se não me engano, hoje vive em Kansas City. Agora concorda com Chandler, segundo o qual ‘L.A. tem tanta personalidade como um copo de papel?’” Ele fez um esgar de nojo. “Está enganado. É a segunda vez em duas perguntas. Moro em Kansas City, mas ainda resido em Los Angeles. E Chandler era um péssimo escritor. Não percebia patavina de policiais”.

Engoli em seco. Agora Ellroy já não falava: rangia os dentes audivelmente. Comecei a ter saudades dos eloquentes monossílabos. Mas sou um profissional: “Por causa da sua prosa pessimista, já foi chamado o Demon Dog do policial americano. Mas alguns dos seus protagonistas – o tenente Klein, por exemplo – têm a sua própria e visionária moralidade…” Pronto, eu preparara o terreno para Ellroy pontificar como um Péricles contemporâneo. Ele catapultou-se da cadeira com uma expressão de indignação cósmica, como se eu tivesse jurado sobre a Bíblia que 1 + 1 = 3. “Criei Klein há 20 anos! Não me interessa peva!”. Imaginei Shakespeare a vociferar para um repórter isabelino: “Que se lixem Macbeth ou Hamlet. Só falo sobre Próspero!”.

Esbocei um sorriso amarelo. “É visto como um conservador. Mas opôs-se à pena de morte e defendeu a restrição à venda de armas…” Olhou-me profunda e sugestivamente nos olhos: “Sou a favor da pena de morte. Certas pessoas não merecem viver.”. Desatei a divagar com um derradeiro e lancinante recurso ao Governador do Estado. Ellroy acrescentou: “Mas é verdade que aprovo o controlo do comércio de armamentos”. Animado, tentei estabelecer uma cumplicidade melíflua: “Eis um mistério que gostava que me ajudasse a solucionar. Vários dos melhores escritores policiais são mulheres. No entanto, as estatísticas indicam que poucas leitoras gostam de thrillers. Tem uma pista?” “É verdade que há boas autoras de policiais. Não faço a mínima ideia porque as mulheres não simpatizam com o género”. Olhou para o relógio. Só faltou sacudi-lo. Para continuar no âmbito criminal, a cara dele agora lembrava a de Al Capone com a mãe de todas as enxaquecas.

E se lhe desse uma oportunidade de desancar nos contemporâneos? Afinal, Ellroy não se cansa de repetir que não lê os colegas, “para não ser influenciado” (apesar de ser mais compreensivo com as gerações anteriores: “Sou como Tolstoi para o romance russo e Beethoven para a música”). Adiante: “Nos últimos tempos, o policial foi reduzido a duas vertentes: a dos serial killers, e a da antropologia forense, com computadores e análises de DNA…” Ele revirou os olhos. “Eu já escrevia sobre essas coisas há séculos”.

OK, então algo que ele também escreveu e que é o seu monograma. “Parece preferir as forças policiais institucionais aos detectives particulares….” “Claro. Os investigadores privados não percebem nada do assunto. São amadores.” Hum. Lembrei-me de que ninguém leva a mal um elogio. “Diversas obras suas foram adaptadas para o cinema. L. A. Confidencial foi nomeado para nove Óscares e ganhou dois. Como se sente ao ver os produtos da sua imaginação projectados no ecrã?”. “É só uma forma de ganhar dinheiro”.

Pronto, então vamos para A Tempestade (afinal, eu já estava sob uma tormenta desde o início). “O seu novo romance, Blood’s a Rover, conclui a trilogia Underworld USA (será editado cá em Outubro). O livro reconstitui factos históricos, e apresenta personalidades célebres, como Howard Hughes e J. Edgar Hoover. Será correcto afirmar que se trata menos de uma obra policial que de ficção histórica?”. “Sim”

Sim? Ele disse “sim”? Achei melhor parar por ali e desliguei o gravador. Pela primeira vez, Ellroy não apenas concordou comigo como pareceu tolerar o facto de eu respirar (ou arfar). Despedi-me a pensar que, apesar da empatia e compaixão que os seus livros contêm, ele é o escritor mais antipático que já conheci. E olhem que a concorrência é renhida.

 

Ora, outro dia, Elrroy deu uma entrevista à sua própria namorada, a também escritora

 

Erika Schickel (aliás, bem mais jovem, simpática e bonita do que ele- uns com tanto, e outros com tão pouco!). Reparem como o Demónio da Tasmânia tratou-a. Não é defeito, é feitio. O pretexto da conversa é mais uma obra sobre a mãe do escritor, cujo assassino nunca foi apanhado.

 


 


publicado por otransatlantico às 17:58
link do post | comentar | favorito

PASSAGEM PARA A ÍNDIA

 

 

Em novembro, Arundhati Roy completará 50 anos. Em que circunstâncias? Até 1996, data da publicação do romance O Deus das Pequenas Coisas, era uma ilustre desconhecida. A partir daí virou uma das escritoras mais badaladas do mundo, xodó da crítica e dos leitores globais. Mais tarde, porém, deu uma banana para a literatura, a fim de se embrenhar no ativismo político apartidário, 25 horas por dia, metendo o bedelho numa gama fervilhante de assuntos, sempre ruidosamente e sempre gerando crispação, adesão e polêmica.

Roy vive numa cobertura em Nova Delhi, a capital da Índia. O pai dela tinha uma plantação de chá e a mãe era uma feminista empenhada. Ao conhecer o seu segundo marido (o primeiro não vem ao caso), o cineasta Pradip Krishen, Roy se envolveu com o mundo do audiovisual. Interpretou até o papel de uma camponesa num filme de Krishen. Como não queria depender dele, exerceu vários bicos, incluindo dar aulas de aeróbica num spa de luxo (jovem, ela era de parar o trânsito – o que, nos perpétuos engarrafamentos de Nova Delhi, não é difícil). E começou a escrever roteiros para o cinema e a TV.

Arundhati é uma crítica feroz de Bollywood, a indústria cinematográfica indiana, que chegou a ultrapassar Hollywood em venda de ingressos. Deplora a dimensão folclórica das produções locais, geralmente dramalhões regados à música delicodoce e… culinária. Para não falar no proverbial patriarcalismo. Roy saudou o recente Khap – A story of honour killing, de Ajai Sinha. O filme narra o dilema de um hierarca tentado a mudar as suas convicções sexistas por amor à sua neta. Suscitou uma celeuma ensurdecedora. “Estava na cara!”, diz Roy, dando uma palmada na coxa. “É natural que as pessoas se escandalizem. Mas o importante é que reflitam sobre o filme.”

O lançamento de O Deus das Pequenas Coisas, que conjuga reminiscências da infância da autora no campo com a história da esquerda na Índia – tudo banhado num exotismo lírico e comedido – entronizou Roy como ficcionista de renome planetário. O romance embolsou o Booker Prize de 1997 e entrou na lista dos melhores do ano do New York Yimes. O sucesso comercial não foi menos atronômico: só de adiantamento, a escritora recebeu 1 milhão de dólares. Editado na Índia em maio, no final de junho o livro já tinha sido vendido para 18 países. Na Grã-Bretanha o entusiasmo foi mais matizado, apesar do Booker Prize. Um dos jurados do prêmio chegou a grunhir que a obra era “execrável”.

Por volta de 2001, Arundhaty deu uma guinada. Os atentados dos extremistas muçulmanos nos EUA e a retaliação americana provocaram nela uma epifania intelectual, uma espécie de “contra-catarse”. Mais ou menos como a operada no ensaísta Christopher Hitchens, que de guru de uma certa esquerda cosmopolita e literária formulou o conceito de islamo-fascismo e defendeu as invasões do Afeganistão e do Iraque. Roy foi no sentido oposto.

Para compreender a renúncia dela à literatura e a opção pela militância, convém olhar para a Índia. Houve uma época em que alguns economistas, para definir o Brasil, falavam numa “Belíndia” – com tantos contrastes, o País seria uma mistura de Bélgica com Índia. Ora, hoje a própria Índia é uma Belíndia… A terra de Gandhi, Tagore e Ray é agora um dos BRIC (ao lado dos outros emergentes: Brasil, Rússia e China), Bangalore consiste no seu Silicon Valley. Entra ano, sai ano, cientistas indianos açambarcam prêmios Nobel de Física, de Química, da Medicina, o escambau.

Porém, quem percorre as ruas de Nova Delhi (ou de qualquer cidade do subcontinente) fica embasbacado com indescritível miséria, imundície e degradação urbanística. Perto de Nova Delhi, a Rocinha é Mônaco. Trata-se de um país-pária, uma nação-intocável. Milhares de prédios são habitados com a construção interrompida e gangrenada, verdadeiros abortos arquitetônicos. Vacas (e um eventual elefante) competem no tráfego das principais avenidas com os tuck-tuck (versões atuais dos riquixós, puxados ou por ciclistas ou motociclistas) e ônibus caindo aos pedaços. As calçadas são canteiros de lixo gorgolejante e dormir em plena rua constitui um hábito corriqueiro não apenas dos sem-teto, mas de qualquer um que esteja fora de casa, esperando um transporte que só vem amanhã (se vier). A ONU calcula que 55 por cento (638 milhões) da população da Índia defecam ao ar livre. E são numerosos os mictórios escancarados (sem tetos nem portas, uma parede com um buraco), utilizados só pelos homens. As mulheres provavelmente contam até mil.

As razões para esta sordidez dantesca são várias, mas três se destacam: a demografia (o formigueiro indiano tem 1,2 bilhão de habitantes), os anacronismos religiosos como a questão das castas e a corrupção quase molecular (a evasão fiscal é alucinante). E é devido a disparidade entre uma nação moderna e até digital por um lado, e por outro pavorosamente injusta e desigual que Roy renunciou às palavras ordenadas para se dedicar às palavras de ordem. Décadas antes, Gandhi fez algo parecido – só que a resistência da escritora nada tem de “passiva”. É mais tipo boca no trombone e botar pra quebrar.

Roy vive em um singelo prédio de quatro andares num recanto discreto de Nova Delhi – um plácido atol no meio de um colossal Triângulo das Bermudas. Não se trata, claro, daquelas mastodônticas torres/fortalezas em que os bilionários indianos se barricam nos seus condomínios fechados, patrulhados por exércitos privados que davam para pacificar o Iraque e o Afeganistão com um pé nas costas (e o Paquistão de lambuja).

A escritora mora no último andar. Atravessamos a sala, decorada com simplicidade, cartazes de filmes e estatuetas orientais, cortinas em tons pastéis quase translúcidas, para conferir uma sensação de ventilação e arejamento. Ainda assim, vindo esturricado da rua, ao ver o aparelho de ar condicionado tive de me refrear para não montar cavalinho nele. Não havia mais ninguém, nem o marido (a não ser nas molduras), nem sons de outra presença humana – reinava um silêncio de abadia. Roy guia-me até ao terraço no telhado, onde há floreiras com flores estóicas, uma gaiola com um periquito dorminhoco, mesa e cadeiras de vime e um toldo puído. “Só se aguenta estar aqui no final da tarde”, explica ela, fitando o meu rosto afogueado. “Desde que passemos repelente de insetos, naturalmente”. Até aí, tudo bem: eu tinha me lambuzado com repelente que dava para afugentar uma praga bíblica de gafanhotos. Enquanto me atrapalhava com o gravador, Roy pediu licença por um minuto e se ausentou.

Uma das primeiras campanhas dela foi contra a construção da barragem de Narmada. Soa contraproducente, pois uma das maiores carências da Índia é o saneamento básico (o Ganges é a cloaca onde grande parte do país ainda se banha e lança os seus mortos, para não falar nos animais em decomposição e no lixo industrial). Mas Roy alega que “a represa é uma falsa solução: deslocará meio milhão de pessoas, e não suprirá nem irrigação nem água potável “. Por causa dos seus protestos, Arundathy foi processada pelo Estado. No tribunal, aproveitou que estava com a mão na massa: denunciou a corrupção nos concursos públicos para a construção da obra. Recusou-se a pedir desculpas e foi condenada a um dia de prisão e a uma multa de 2500 rupias.

Regressou minutos depois, com um bandeja, duas xícaras e um bule. “Quer chá?” Querer, não queria, pois era quente como lava. Reconheci o massala chai, o chá que todos os indianos consomem, independentemente da classe social – uma espécie de sandálias havaianas da Índia. Até agora eu tinha conseguido escapar. Bem, beco sem saída. O gosto até é bom, com umas gotinhas de leite e especiarias que não identifiquei. “Sabia que foi uma portuguesa que introduziu o chá na Inglaterra?”, perguntou Arundathy, enquanto eu soprava furtivamente para a xícara. Fingi que não sabia. “Foi Catarina de Bragança, a princesa lusa que casou com Carlos II. Aliás, ela ensinou também os ingleses a comerem com garfo e faca.” Sempre que ouço essa história, rumino: “Pena que não levou também umas receitas culinárias para a Inglaterra. Bacalhoada, por exemplo.”

Mesmo os que reconhecem a coragem de Roy acham que ela às vezes, bem, surta. Exagera e simplifica. Com uma gargalhada sarcástica, a própria concorda: “Sou histérica! Grito por causa do sangue que pinga dos telhados. Há quem reclame: ‘Psiu! Você vai acordar a vizinhança!’ Ora, eu quero acordar a vizinhança inteira! Quero que todo mundo abra os olhos.”

Quanto à escrita, não é que Arundhaty tenha trancado o seu laptop num sarcófago – apenas a ficção. Ela não só equipara moralmente os atentados do 11 de Setembro à Guerra ao Terror como – recordando as palavras de Adorno sobre fazer poesia depois de Auschwitz - exclama, ao seu estilo elegíaco e veemente: “Será outra vez possível apreciar o lento e perplexo pestanejar ao sol de um lagarto recém-nascido, ou responder ao ronronar de um gato no nosso ouvido – sem pensar nas Torres Gêmeas ou no Afeganistão?”

Os livros de ensaios panfletários proliferam: antiglobalização, contra o que intitula “neo-imperialismo americano”, contra a “nuclearização indiana” (em 2006, a administração Bush assinou um controverso acordo nuclear com a Índia). O argumento de que o vizinho e hostil Paquistão tem a bomba não a convence: “Atacar o Paquistão implicaria espalhar ainda mais o terrorismo e precipitar toda a região no caos”.

Volta e meia Roy é criticada pelos seus pares mais proeminentes. Depois dos atentados terroristas contra hotéis de Mumbai, em 2008, observou que estes não podiam ser encarados isoladamente, mas num contexto histórico mais amplo, como a pobreza generalizada, “o último pontapé do colonialismo britânico”. Salman Rushdie ridicularizou o elo que Roy vê entre o extremismo e uma discriminação contra os muçulmanos (a Índia ainda é o país com maior população islâmica, depois da Indonésia). Após Roy lamentar o estatuto icônico do Taj Mahal, Rushdie espumou: “Este comentário foi apenas o mais recente de uma série de diatribes dela contra a Índia e as coisas indianas”.

Arundathy pergunta se eu gostaria de mais chá. Respondo que não quero abusar e insisto nas críticas à sua militância. Ela esboça um sorriso seráfico: “Ah, santo de casa não faz milagre… Confundem tudo. Nada pode justificar o terrorismo, que é uma ideologia sem coração. Veja o Talibã. Espancam, estupram, apedrejam e infantilizam a mulher. Porém, quando acharam conveniente, os EUA os apoiaram e lhes forneceram armas. O discurso dos governantes americanos são puro Big Brother: ‘Somos pacíficos. Porcos são cavalos. Meninas são meninos. Guerra é paz’.” Obama também entra na dança: “Bush era de uma estupidez obscena. Quanto a Obama, de boas intenções o Inferno está cheio”.

A voz da escritora é doce, mas não melíflua. A amargura e o azedume adejam nas proximidades. A suavidade da dicção acompanha uma retórica inexorável. Os olhos são grandes como os de uma coruja que já viu tudo. As mãos não param de gesticular, que nem um maestro germânico ou um italiano… bem, italianíssimo. Verifico que, com meio século de vida e a antítese do tipo Paris Hilton, Arundathy ainda é uma mulher atraente, apesar do cabelo preso, da testa abobadada. Uma fusão tardia de Jennifer Beal com Halle Berry – menos chocolate e mais jambo.

As objeções à militância de Roy não se restringem a indianos. Estes, e mesmo os que subscrevem muitas das suas posições, assinalam que ela negligencia os efeitos positivos do desenvolvimento econômico do país. Um recente relatório da UNICEF sobre a pobreza no sudeste asiático, quase uma réplica à escritora, indica que “as medidas da Índia para reduzir a mortalidade infantil são uma fonte consistente de esperança.” A conclusão do documento é clara: “Os bons resultados são uma consequência do actual crescimento da economia”. Arundathy não engole essa: “É, eles adoram as torres gémeas da modernidade – o mercado e a democracia….O verdadeiro produto dessa política é a massificação e o fascismo. A democracia é uma fraude.

Sorvo abnegadamente as últimas gotinhas de chá, suando em bica. E, de súbito, ouço a informação que é (ou pode ser…) um arco-íris no fundo do túnel: “Mas estou escrevendo um novo romance… Sem pressa. Afinal, levei cinco anos para acabar O Deus das Pequenas Coisas’

Agradeço a todos os deuses do panteão hindu- o que leva um certo tempo (só os da Primeira Divisão são 22). O suficiente para que me ocorra uma última pergunta: “Pode pelo menos levantar uma pontinha do véu sobre o tema do romance?” Os olhos da autora emitem uma centelha marota: “Ah, uma indiana da gema jamais levanta a ponta do seu sari publicamente.

 

(Texto publicado no nº de Outubro da revista brasileira "Piauí"

publicado por otransatlantico às 17:41
link do post | comentar | favorito
Quinta-feira, 14 de Outubro de 2010

O MESTRE MAGISTRAL

 

 

 

Naquela época, quando o século XX já precisava de Botox (reparem na minha camisa estapafúrdia, em plena Cambridge e já atrasado para a aula) mas ainda não estava comatoso, o Repórter ainda era jovem o bastante para se julgar, se não sábio, ao menos sagaz. Porém, o que era dele estava guardado: George Steiner iria ensinar-lhe uma lição daquelas. Ou duas. Ou…

O Repórter vivia temporariamente em Londres e tinha uma namorada portuguesa, que tinha um carrinho italiano (um Fiat Mini), que tinha a direção do lado esquerdo, ao contrário do que é padrão na Inglaterra. A namorada fazia pós-graduação em Cambridge mas tomava o comboio para lá, legando ao namorado o previsivelmente minúsculo Mini. O Repórter quase nunca usava o carro, pois, perto da destreza dele, até um recém-nascido seria um ás do volante. Sobretudo num país cujo tráfego rolava com regras opostas às que ele estava acostumado. Preferia atravessar a nado (nu e lambuzado de mel) um rio infestado de piranhas em jejum.

Porém, naquele dia houve uma greve ferroviária e ele teve de ir com o Mini buscar a namorada em Cambridge (ela apanhara boleia só de ida com uma colega). Por causa do protesto o trânsito era compacto e lento. O repórter não se importou. Dado o país, o tempo até estava bom: os ingleses sabem que o verão chegou porque a chuva é mais quentinha.

Naquela época o fumador ainda não era um serial killer, e o repórter fumava que nem um proto-genocida. Entalado no engarrafamento, tirou o último cigarro do maço, amassou a embalagem e a lançou pela janela. Na frente do Mini palpitava e silvava um camião ciclópico, daqueles que parecem uma centopeia XL, com seus duzentos pneus. A porta do paquiderme de metal se abriu qual ponte levadiça e o camionista apeou-se. Tratava-se da ideia platônica do camionista: com a barba escanhoada a machado e uma compleição de Himalaia. Aproximou-se do Mini, que, intimidado, fingiu que era Micro. Curvou-se, agarrou o maço amassado e, brandindo-o como uma granada, interpelou o Repórter numa voz gélida:

- Foi o senhor (na Inglaterra, até os trogloditas são gentlemen) que perdeu isto?

A resposta soou inteligível mas esganiçada, em falsete:

- Fui…

- Então, da próxima vez perca as coisas no seu país! – Arremessou a granada para dentro do Mini e voltou para o seu Leviatã.

Um dia memorável: o Repórter começou a parar de fumar (ainda não acabou de parar, mas quase) e descobriu o seminário de George Steiner em Cambridge.

 

 

 

 

O Mestre nasceu em Paris, filho de judeus vienenses. É o homem do mundo mais universal de todos os tempos. Teve três línguas-mãe: alemão, inglês e francês. Aos seis anos, o pai dele, entusiasta da boa e velha educação clássica, ensinou o pequeno George a ler a “Ilíada” no original grego. Pela vida fora Steiner seguiu à risca a máxima de Goethe: “Nenhum monoglota conhece verdadeiramente a sua própria língua”.

Um mês antes de os Nazistas ocuparem Paris, a família Steiner fugiu da França. Dos judeus que eram colegas de escola de George, só um sobreviveu. A sombra do Holocausto marcou o Mestre e forneceu-lhe um tema obsessivo: “A minha vida inteira foi debruçada sobre a morte”. Como a cultura que gerou Bach também produziu Auschwitz? O nexo entre fogo de Prometeu e as cinzas dos fornos crematórios...

Quando começou a lecionar em Cambridge, Steiner não foi muito bem recebido pelos seus pares, precisamente pela proeminência que conferia ao Holocausto. Contudo, acabou por se tornar quase tão inglês como a Carta Magna (apesar de adotar a nacionalidade americana). Uma síndrome que contaminou vários filósofos estrangeiros na Inglaterra, como F. A. Hayek, Isaiah Berlin (cujo estilo de escrita foi comparado ao de “um Gibbon andando de motocicleta”), Karl Popper e até o idiossincrático Wittgenstein. Não que o Mestre podasse o hirsuto gramado da sua cottage com uma pinça, usando um chapéu de coco e um guarda-chuva enganchado no braço – mas quase.

E para Steiner foi moleza a adoção do wit – o proverbial humor britânico, sutil e rarefeito. “Quem seria crítico se pudesse ser escritor?”, exclamou certa vez. Em casa de ferreiro, espeto de pau: a sua própria ficção é sofrível, pelo menos comparada com a ensaística.

O Repórter não chorou de barriga cheia: o seminário foi um recital de erudição – um nadinha cabotina, como convém a um mandarim, mas sempre condimentada com epigramas mordazes e um carisma até histriônico. Numa aula alguém perguntou ao Mestre se ele nunca tinha lido nada leve quando era criança.

- Claro! Li “Moby-Dick”.

Na versão integral, naturalmente.

Sem ilustrações, como é óbvio.

No fim-de-semana, o centro acadêmico organizou uma visita a Stonehenge. Para assombro de todos, quando o autocarro estacionou o Mestre aderiu ao grupo, flanqueado por um amigo de fora que ia ciceronear. O Repórter sentou-se ao lado de um jovem oriental, que não deu um pio durante os 150 kms do percurso, sempre com o nariz e a testa colados no vidro da janela. Será que ferrara no sono? Ou cometera haraquiri furtivamente?

 

Stonehenge

 

 

Stonehenge é impressionante, mas os monolitos estavam rodeados por uma corda. Não, o Repórter não pretendia rabiscar com a Bic “Eu estive aqui” numa pedra hierática - mas foi um tanto anti-clímax. Pensou menos nos druidas ou na Matéria da Bretanha do que em Natasha Kinski, que por ali passara no auge do seu esplendor, como o cabide cinematográfico da Tess de Thomas Hardy.

De volta ao autocarro, o Repórter encalhou no corredor, atônito: não tinha reparado que havia dois jovens orientais sentados à janela na mesma fila que ele – qual deles era “o seu”? Não, não que “japonês é tudo igual” – ora, o Repórter praticamente não vislumbrara o rosto do seu esquivo parceiro! Enquanto ruminava, notou que o Mestre, já instalado, o observava com um sorriso irônico. Na aula seguinte, com toda a gente ouvindo Steiner como se ele fosse um salmista, o Mestre deu um jeito de gozar com a fobia histórica do “Perigo Amarelo” – e lançou uma olhadinha marota ao Repórter. Ainda hoje este se lembra de ter corado até ficar da cor do mirtilo (as bochechas fumegavam, a testa crepitava). O Mestre não perdeu tempo: “Já o Perigo Vermelho…” O Repórter entrou praticamente em combustão espontânea.

O Repórter sempre fora doido por citações, quase um colecionador. Aliás, uma das mais engraçadas (de Jô Soares!) é sobre o anúncio classificado de um colecionador: “Colecionador de coleções compra coleção de coleções”. Na aula de Cambridge, Steiner pontificava sobre aforismos e filosofia (de Pascal a Cioran) e mencionou um epigrama que o Repórter adorava. Mas com um lapso! Seria possível? Aquele enciclopedista? Era possível (naquela época nem o seu ouvido – nem outras partes mais temperamentais do corpo do Repórter – o enganavam). A frase era do poeta Robert Browning, e troçava da memória e, principalmente, do sentido: “Quando escrevi isso, só Deus e Robert Browning sabiam o que significava. Hoje, só Deus sabe”. Mas o Mestre trocara Browning por Tennysson!

O Repórter esboçou um sorriso mefistofélico: feito a vichyssoise , a vingança é um prato que se come frio. Levantou o braço como se hasteasse a bandeira das tíbias cruzadas e – arvorando uma humildade melíflua – corrigiu-o polidamente. O Mestre soltou uma gargalhadinha triunfal e deu palmadinhas na capa de um livro que tinha na outra mão.

- Ah, é um prazer verificar que vocês, apesar de a vida ser cheia de perigos coloridos, estão prestando atenção.

Agora o Repórter – e os colegas - podiam ver a capa do livro.

Era de Robert Browning. Uma marcador assinalava a página da citação.

O Repórter já não estava Vermelho. Muito menos Amarelo. Estava branco como uma aspirina. E precisando de emborcar uma caixa de aspirinas.

Mas a Lição não foi aquela. Com um homem que sabia 100 por cento de 99 por cento das coisas, o então presunçoso Repórter aprendeu que não sabia quase nada sobre quase tudo. Muitos anos mais tarde, numa autobiografia em que fala explicitamente sobre a sua vida sexual (aos 80 anos! Agora era a vez de os escolásticos de Cambridge corarem), Steiner confirmou que não pode ser acusado de falsa modéstia:

- Em meio século de magistério, encontrei apenas quatro pupilos (três homens e uma mulher) mais espertos do que eu.

O Repórter tem tanta certeza de não ser nenhum daqueles três como de que não é a quarta.

publicado por otransatlantico às 10:13
link do post | comentar | favorito

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Setembro 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
30

.posts recentes

. ...

. E AGORA, COM VOCÊS, HITLE...

. “CONSIDEREI ESCREVER UM R...

. CLARO QUE ELE ADORA PITBU...

. PASSAGEM PARA A ÍNDIA

. O MESTRE MAGISTRAL

. MACACO É A SUA AVÓ!

. A MENSAGEM NUMA GARRAFA

. ALTA COSTURA E ALTA CULTU...

. AGENTE FINO É OUTRA COISA

. TREVAS AO MEIO-DIA

. ALICE NO PAÍS DAS MARAVIL...

. O TABACO SALVA!

. PINTAR O INSTANTE

. LEVANTADO DO CHÃO

. VAN GOGH PINTAVA O CANECO

. FAMA E INFÂMIA

. CASAIS DE ESCRITORES: PAL...

. O DONO DA VOZ

. LIVROS? DEUS ME LIVRE! 1 ...

. CHURCHILL E OS CHARUTOS

. O IMPACIENTE INGLÊS

. ENTREVISTA JAVIER CERCAS

. OSLO QUEBRA O GELO

. O APOLO DIONISÍACO

. O PAI DO SNOOPY

. O CACHIMBO PENSANTE

. ÇA VA?

. TRÊS ALEGRES TIGRES

. O ARCANJO OBSCENO

. RESORT 1 ESTRELA (NO PEIT...

. JACQUES, LE FATALISTE

. HITLER, MEU AMORZINHO

. O ETERNO RETORNO DO ETERN...

. ENTREVISTA: ALI SMITH

. O BARDO DO FARDO E O TROV...

. A MÚSICA DAS ESFERAS IV

. ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA D...

. SEXO E OUTRAS COISAS EMBA...

. ALI E ALÁ

. VIVA LA MUERTE?

. O BELO MALDITO

. REPERCUSSÃO DESTE BLOG!

. DEBAIXO DO VULCÃO

. PUSHKIN, O EMBAIXADOR E E...

. A ÚLTIMA CEIA DO MODERNIS...

. MAILER, VIDAL, CAVETT

. O REI DESTA SELVA VAI NU

. QUEM TEM K SEMPRE ESCAPA

. ENTREVISTA UMBERTO ECO

.arquivos

. Setembro 2011

. Abril 2011

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

.tags

. todas as tags

.links

.subscrever feeds