Terça-feira, 19 de Abril de 2011

E AGORA, COM VOCÊS, HITLER!!!!!!!!!!!!

Floor Plan I. M. Pei Building - basement floor - German Historical Museum Führer Myth and Führer Movement  -   Hitler and the Nazi Party Transfer of Power and »National Revolution« German Society and Hitler The »Führer State« Führer Power and War of Extermination German Society at War Hitler and No End

Floor Plan I. M. Pei Building - basement floor - German Historical Museum

 

 

 

         

       

            Até 6 de Fevereiro de 2011, no Museu de História da Alemanha, em Berlim, poderá ser visitada a mais completa exposição sobre Adolf Hitler desde o fim da II Guerra Mundial. Ou seja, de todos os tempos. Entre os curadores, comandados por Hans-Ulrich Thamer, pontificam ecumenicamente as maiores sumidades no assunto – do conservador Michael Stumer ao esquerdista Reinhard Rurup. O evento contempla os inúmeros âmbitos da personagem: histórico, político, militar, diplomático, estético, etc. Hitler continua sendo um tema tão melindroso que a exposição demorou seis anos para ser articulada – tantos como a guerra mundial que o seu protagonista desencadeou.

            A intenção – mais nas entrelinhas do que nos discursos oficiais – é exorcizar de uma vez por todas o tabu e equacionar Hitler como uma criatura histórica inteligível, e não como o Anticristo (no seu último romance, Norman Mailer apresentou Hitler como o sócio de Belzebu). Há alguns problemas nesta “secularização” da Besta. Primeiro, as desmioladas especulações brandidas para “decifrar” o genocida: que ele tinha apenas um testículo, que era fruto de uma relação incestuosa, que era um gay enrustido (tese de Lothar Machtan), que continha uma raríssima espécie de gene (especialmente perversa), e por aí vai. Ah, durante a I Guerra, Hitler foi condecorado com a Cruz de Ferro, em 1918, depois de ser temporariamente cegado por gás mostarda. Examinado por um psiquiatra, este diagnosticou-o como psicopata. Quantas encrencas nos teriam sido poupadas se o tivessem agasalhado numa camisa-de-força e jogado o cadeado fora.

            Depois, e tão intrincada como a racionalização deste Bicho Papão, é o nexo do Fuhrer com os alemães – antes e agora. Hitler teve envolvimentos heterossexuais em diferentes graus. Desde a sua sobrinha Geli à cineasta Leni Riefenstahl, que só faltou estuprá-lo (ele defendeu-se muito melhor do que a linha Maginot), culminando em Eva Brau. Mas, como o próprio Fuhrer professou frequentemente, “a multidão é uma mulher, e as massas adoram ser dominadas como as esposas.” Para ele,  sua suprema amante era a própria Alemanha, uma nação que idealizava como uma valquíria casta e pura, protetora e tranquilizadora. Pensando bem, o pior de tudo não foi essa tara funesta. Foi que a Alemanha lhe correspondeu passionalmente. Em um comício em 1936, perante o chilique de 140 mil extáticos apoiantes, Hitler salmodiou: “Vocês terem me encontrado, entre milhões de pessoas, é um milagre da nossa era”.

            E foi esse o principal abacaxi que os curadores tiveram que descascar – por assim dizer, assinar de uma vez por todas os papéis desse divórcio/viuvez. E sempre com um olho nos neonazistas (para que estes não convertessem o Museu em santuário) e o outro no politicamente correto (para não falar nas associações de vítimas do Holocausto, Telavive, etc.).

            A opção dos curadores, no que concerne ao acervo, foi pelo minimalista. Isto é, nada daquele monumentalismo ciclópico, encomendado a Speer e que inspirou a Walter Benjamin a observação famosa: “O fascismo estetiza a política.” Nada de paradas militares com milhares de robôs de carne e osso em passos-de-ganso uníssonos, numa versão demoníaca das coreografias de Bubsby Berkeley. Nem dos Super-Homens arianos e apolíneos filmados por Riefenstahl em Olímpia. Implicitamente, o conceito dos curadores foi, se não “small is beaufiful”, pelo menos “small is awful enough”. Assim, declinaram a oferta do exército americano de um retrato tamanho-família de Hitler, apreendido após a rendição germânica, para o átrio da exposição.

            A obsessão de não confundir a mostra com uma homenagem fez com que o próprio título do evento fosse alterado. No início, era apenas “Hitler”. Em seguida, considerou-se apropriado dar o nome aos bois e vincular o Fuhrer ao seu povo. A exposição/expiação intitula-se, cruamente, “Hitler e os Alemães – Nação e Crime”. A História é que não discordará. Afinal, a poucos metros do museu está a praça onde, no infame maio de 1933, bruxuleavam as labaredas dos livros queimados pelas multidões nazistas, em piras cada vez mais altas. E se algum judeu era usado como fósforo, melhor ainda.

            Na verdade, todo cuidado é pouco, sobretudo com a União Europeia a vacilar à beira do abismo de uma crise econômica que ameaça o Estado-Providência. No próprio dia da inauguração, foi divulgada uma pesquisa segundo a qual 1 em cada 10 Alemães aprovaria “um líder forte”, um “Fuhrer”. E quase 40%, que suspiram de saudades do robusto marco (substituído pelo tempestuoso euro) afirmaram que a Alemanha está “perigosamente ameaçada pelos imigrantes”. Isto apesar de o índice de emprego nas empresas alemãs ser praticamente o único na União Europeia que voltou a crescer.

            É certo, porém, que o tabu que rodeava o Fuhrer vem mudando há algum tempo – daí os curadores terem finalmente peitado o desafio. Para os jovens de hoje, o messias do III Reich já não é mais um avatar histórico do vilão de Harry Potter (“Valdemort”), “Aquele Que Não Se Deve Nomear”. E, para os adultos, Hitler já não é mais como a palavra “câncer”, que faz a nossa língua relutar supersticiosamente. Embora o Partido Nacional-Socialista continue proscrito, assim como a utilização da suástica, nos últimos anos proliferaram biografias e documentários televisivos sobre o austríaco que um dia se definiu como “o homem mais duro que jamais existiu.” Em 2004, o tabu levou mais um tranco com o premiado filme “Downfall”, que relata quase com uma lupa os últimos dias de Hitler no seu bunker berlinense. A obra foi aclamada por mostrar o Fuhrer como uma pessoa (ainda que odiosa) e não como um mutante apocalíptico. Por outro lado, a “persona” de Hitler ainda é protéica, difícil de sistematizar, dada a sua sedimentação no imaginário contemporâneo como a quinta-essência do Mal absoluto. Uma tentativa de instalar uma representação de cera do Fuhrer no congênere alemão do Museu Madame Tusssaud acabou com a decapitação da estátua…

            Assim, antes de aprovarem o catálogo da exposição (25 euros e quase 400 páginas, não tanto devido às peças mas aos eruditos ensaios que as acompanham, incluindo um sobre “o papel das esposas na guerra”), os curadores passaram cada item a pente fino. Logo na entrada, em vez do quadro majestático sugerido pelos americanos, o visitante se depara com três fotografias: Hitler como agitador partidário, como chanceler e – numa arrepiante fotomontagem – como efígie da própria Morte. Significativamente, o ditador nunca é exibido sozinho, mas sempre engastado no contexto social, político e militar em que atuou.

            Algumas das peças mais interessantes – e perturbadoras – nem sequer introduzem o Fuhrer, mas documentam a tal promiscuidade e empatia entre ele e o seu (Hitler arrancaria o bigodinho de taturana se lesse esta analogia) próprio “povo eleito”. Por exemplo, uma tapeçaria bordada por duas associações femininas, que representa a Juventude Hitleriana, as SA e a Liga das Moças Germânicas, marchando para o porvir radioso da raça pura. A legenda da tapeçaria, também bordada em ponto-cruz, é o Pai-Nosso… Outro item sugestivo, até pela sua singeleza prosaica, consiste numa caneca de recolha de esmolas para a caridade, que num primeiro momento parece tocante, até vislumbrarmos nela uma pequena suástica.  

            A ansiedade dos organizadores em evitar qualquer identificação do visitante com o Fuhrer – muito menos como um carismático visionário - ditou decisões inopinadas. Vemos numerosas imagens de Hitler, de fotos a bustos em pedestais, mas nunca o ouvimos: nem uma sílaba dos seus torrenciais discursos, proferidos com aquele histrionismo entre operático e a gesticulação de um guarda de trânsito. O espectro foi amordaçado.

            E objetos mais pessoais são quase escamoteados, confinados em pequenas caixas, gavetas ou estojos. É o caso do livro de fotografias “O Hitler Que Ninguém Conheceu”, de Heinrich Hoffman, o fotógrafo predileto do Fuhrer, bem como de um baralho cujas cartas ostentam líderes nazistas, de Hitler a Rudolf Hess. Uma escrivaninha de Hitler, que guarnecia a Chancelaria do III Reich, está pendurada no teto, toda torta, em vez de simplesmente pousada no chão.

            A última sala da exposição apresenta 46 capas da revista “Der Spiegel” sobre Hitler e o nazismo. Do título mais antigo (“A Anatomia de um Ditador”, de 1964) ao mais recente (“Os Cúmplices”, de 2009), tais matérias também refletem uma mudança na percepção da História. Na mesma sala, estão ainda os falsos “Diários do Fuhrer”, publicados pela rival “Stern”. O que não impediu a “Spiegel” de criticar a exposição, argumentando que, 65 anos depois do fim da II Guerra, os curadores continuaram condescendentes e paternalistas em relação ao público alemão, lidando com a “memorabilia” hitleriana como se fosse pornografia.

            Por isso, muitos duvidam de que a exposição cumpra o seu objetivo subreptício: cravar uma estaca no coração do morto-vivo. Aliás, como reconheceu um dos principais organizadores, Simone Erpel: “Ainda falta muito para acabarmos com Hitler. Cada geração tem de encontrar suas próprias respostas.”

            Quando, em 1945, os soviéticos confirmaram a descoberta dos restos mortais de Hitler, o repórter da revista “Newsweek” escreveu: “Por uma vez, a morte pôs um sorriso nos lábios da Humanidade.” Talvez esse sorriso tenha sido prematuro – e um fantasma ainda ronde a Europa.

 

                                                          

(TEXTO PUBLICADO NA REVISTA "PIAUÍ")

           

publicado por otransatlantico às 19:24
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