LIVROS? LIVRA! (1)
Hoje em dia, quem espreitar a montra (vitrine) de uma livraria verá algo inopinado: a maioria dos autores é da TV. E não só cá: na Inglaterra e nos EUA, os hits são o livro de receitas de Jamie Oliver, e ‘ABC of Sex’ e ‘Supernanny’, de apresentadoras de TV. A diferença é que cá os VIP da TV nos infligem romances sem dó nem piedade, à sangue-frio (mas não o de Capote).
Aliás, em Portugal não há quem não queira escrever um romance (o que seria um bom sinal, se ao menos também os lêssemos). Ah, pavonear a nossa obrinha na estante da sala, entre o Camões e o Pessoa! E, agora que o homem bateu a bota, o Saramago, com o seu Nobel lindinho. Ora, nada mais fácil: como ouvi de alguém, todo o livro deve ser feito como um relógio e vendido como uma salsicha (só que o relógio é dos ciganos, e é mais fácil digerir uma banana de dinamite do que esta salsicha).
Dizia-se que a TV mataria a literatura, mas ela foi mais esperta: reciclou-a em iliteracia encadernada – os analfabetos funcionais são leitores vorazes. Há muito que os escritores se apearam da torre de marfim e vendem o seu peixe na ágora – em vão. Hoje, nem que Shakespeare ressuscitasse venderia um milésimo de qualquer boçalidade assinada por um tipo que lê o boletim meteorológico na TV. Hoje, as pessoas compram livros como quem compra a ‘TV Guia’ ou a ‘Nova Gente’. Uma imagem vale por mil palavras? OK, então agora tentem dizer isso em imagens… Culpa dos editores? Sim, mas não só: alguns editores são escritores falhados, mas isso a maior parte dos escritores também é.
Nunca fui populista em relação à cultura (nem a nada), mas não me agrada conversar com autores que escreveram mais do que leram.
Bem sei que Cervantes e Dickens foram popularíssimos em vida, mas hoje há algo de contranatura num ‘best seller’ genial. Já imaginaram um Kafka a dar autógrafos num hipermercado? Seria a coisa mais kafkiana de sempre. Será que todos os que compram Saramago e Antunes os devoram? Ou é só para condizer com os ‘bibelots’ da estante da sala?
A literatura de verdade tem a ver não com campeões de audiência, mas com duas solidões: numa extremidade, a do escritor a escrever; na outra, a do leitor a ler. O resto é fábrica de adubo.
E os escritores televisivos urdiram uma cilada para os autores literários. Até ontem, eis uma das raras vantagens em ser-se um romancista lusófono: escrever consistia na única profissão em que ninguém era considerado ridículo se não ganhasse dinheiro. Hoje, nem isso.
Com o cotovelo em estado de coma, estou quase a entrar na dança e a apregoar: não precisam ler os meus livros – basta comprá-los! Mas, não, essa livralhada não é para mim. Assim como não é a daqueles escolásticos que sabem tudo sobre a literatura – menos como divertir-se com ela.
(Esta crónica continua para a semana. Não percam os próximos parágrafos, cheios de sexo e violência!)
LIVROS? LIVRA! (2)
Quando critico a logorreia dos livros televisivos excluo as obras dos telejornalistas. Profissionais da escrita, não fazem parte da salsicharia editorial. Mas celebridade não é reputação – não é por trabalharem na TV que os seus romances são melhores ou piores.
Todos ouvimos falar na morte do livro, na morte do autor, na morte do leitor. Os computadores nunca substituirão os livros: não se pode subir numa pilha de CD para chegar à prateleira de cima.
E a TV? OK, comparados com esta, os livros vacilam. As imagens televisivas são um veículo perfeito: correspondem ao que representam. As palavras impressas, não. Não passam de marquinhas negras no papel – têm de ser decifradas, numa operação mental complexa, que requer concentração e introspeção. A civilização nasceu sobre tal operação. Conseguirá sobreviver sem ela?
Os programas literários na TV? Louváveis. Mas defender que conseguem salvar a literatura equivale a acreditar que é possível convencer um miúdo de oito anos de que beijar uma jovem pode ser mais divertido do que comer um gelado (sorvete).
Os riscos da cultura na TV são ou o reducionismo ou o cabotinismo. Quanto ao primeiro, ouvi um apresentador explicar que «prosa é quando todas as linhas, menos a primeira, chegam até à margem. Poesia, não.» Dicas para a apreciação? Ora, a crítica às vezes assume a forma: «tens talento e eu não, e claro que isso não pode continuar assim». Em compensação, arrasar uma coisa, sobretudo se é emproada e presunçosa, constitui um sadismo delicioso. Enfim: é muito mais fácil ser crítico do que ser justo.
Sobre o programa da Bárbara Guimarães já falei. Nunca fui entrevistado por ela (claro que a noite ainda é uma criança*), mas um escritor deve sentir o mesmo que Dante sentiu quando Virgílio o confiou à Beatriz – a entrar no Céu. Já Francisco José Viegas denota uma cordialidade um tanto esfíngica, mas que nunca descamba na descontração oca e pateta. E dá a impressão de que realmente leu as obras cujos autores interpela (não calculam o quanto isto é raro). Ana Sousa Dias deixava os convidados falarem – só por isso, devia ser beatificada. Paula Moura Pinheiro tem uma certa tendência a pontificar. Porém, eu lhe perdoaria tudo, se ao menos ela parasse um bocadinho de simular aspas com os dedos (nem que para tanto fosse necessário roer as unhas).
Divulgar os livros na TV é uma tarefa árdua. Mas pensem nisto: a literatura é muito mais apaixonante que a própria existência. Observem a vida real. Convenhamos: a ação é repetitiva, os diálogos bastante fracos e o início e o fim sempre iguais.
(* Depois desta crónica, publicada no Expresso, fui entrevistado pela Bárbara Guimarães. Quem não chora, não mama)
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