Sexta-feira, 16 de Julho de 2010

O ARCANJO OBSCENO

 

 

 

 

 

 

Provocador nato, amante irresistível, dono de palavras que semeavam o escândalo mas também o sucesso, o «cabeça de couve» nascido Lucien Ginzburg, morreu há quase 20 anos, e França recorda-o agora com a publicação de uma biografia (definitiva?), a antologia do seu repertório recolhida em álbum duplo e em 18 CD e um biopic nos cinemas. Como dizia Brigitte Bardot, «era uma vez um príncipe louco de um reino demasiado exíguo para ele...»

Há 20 anos, a criatividade francesa perdia um dos seus melhores malditos: Serge Gainsbourg, um descendente legítimo de uma estirpe de delinquentes magistrais, que inclui expoentes como Villon, Lautréamont, Baudelaire e Rimbaud.

Gainsbourg era um virtuoso da autopromoção e um provocador incomparável. Num programa de televisão em direto e ao vivo, queimou uma nota de 500 francos diante de um apresentador embasbacado, para denunciar a ganância tributária do Governo. Compôs uma versão iconoclasta da «Marselhesa», o hino nacional francês, que fez espumar os membros mais chauvinistas da Legion D'Honneur. Noutra emissão de TV (vídeo abaixo), anunciou alto e bom som para uma Whitney Houston de olhos esbugalhados e sentada ao seu lado: «I want to fuck you!»

 

 


 

 

 

 


 

 

Mas engana-se redondamente quem julga que ele não passava de um bufão escandaloso, criado pela imprensa popular. O impacto dele na música francesa é inestimável. Com mais de 200 canções gravadas por vozes que vão de Juliette Greco a Yves Montand, ou de Alain Chamford a Vanessa Paradis, Gainsbourg alcançou uma audiência que transcendeu gerações e eras musicais. Daí que, quando morreu, fosse uma espécie de tesouro nacional - embora um tesouro escabroso como Sade.

Para assinalar a primeira década da sua morte (de ataque cardíaco…), foram lançados em França «Gainsbourg», a biografia definitiva de autoria de Gilles Verlant (ed. Albin Michel, 763 págs.), o álbum duplo «Gainsbourg Forever», antologia de 43 canções, e uma caixa homónima com 18 CD.

Quem era afinal este homem que foi chamado por uns «cabeça de couve» e por outros «apocalipse estável»? Serge Gainsbourg nasceu Lucien Ginzburg, em Paris, no ano de 1928. O pai dele era um judeu russo, que viera para França depois da revolução bolchevista. Durante a ocupação alemã, a família usou primeiro a infame estrela amarela ao peito, mas conseguiu sobreviver graças a documentos falsos. Em tais circunstâncias, o rapaz começou a esgrimir uma visão de mundo cínica e fatalista, cristalizada mais tarde num verso de 1979: «Moralidade: água e gás em todos os seus estados».

Desde a adolescência, ouvia Scarlatti, Bach, Chopin, Gershwin e Irving Berlin no piano paterno. «O meu pai parou em Schumann, Debussy e Ravel, mas eu continuei com Stravinsky, Schoenberg e Alban Berg», explicava. Depois, virão Billie Holiday, Art Tatum, Cole Porter e Dizzie Gillespie.

Nos anos 50, o jovem Gainsbourg ganha a vida como pianista de cabarés da Rive Gauche e como pintor de cartazes de cinema. Na casa nocturna Milord Arsouille (onde se estreara Charles Trenet), conhece Boris Vian, que o encoraja a escrever canções. Ele não se faz rogado, e num piscar de olhos está a compor para as maiores vedetas do chamado grupo de St. Germain-des-Près, onde a boémia era feérica, onírica e oficial. Eis o lema daquele cenáculo existencialista: «Nenhuma pessoa civilizada vai para a cama no mesmo dia em que dela se levantou». Juliette Greco ungiu obras como «Le Poinçonneur des Lilas» e «La Chanson de Prévert» em clássicos instantâneos. Já então Gainsbourg fumava como uma chaminé e bebia como um peixe. Mas não, não foi ele quem exclamou, certa tarde num 'bistrot': «Quem roubou a rolha do meu almoço?» Até porque, naquela tarde, Gainsbourg já estava uns quinze ou vinte copos acima do nível do mar.

Um belo dia, Lucien tomou duas decisões importantes. A primeira: (seguindo um conselho de Jacques Brel) que ninguém podia cantar as suas canções melhor do que ele próprio. A segunda: mudar o seu nome para Serge Gainsbourg. O primeiro álbum, lançado em 1958, entrou por um ouvido do público e saiu pelo outro. Mas os críticos e os seus pares caíram de joelhos e lamberam os beiços. Serge não se importou, pois nem mesmo ele levava a mal um elogio.

No princípio dos anos 60, Gainsbourg dividia irmãmente o seu tempo entre discos pessoais e composições para terceiros. Mas tudo mudou quando encontrou a cantora France Gall, então com 18 verdejantes aninhos. Foi a primeira Lolita deste Humbert-Humbert. Ela projetara-se recentemente, com uma seráfica canção sugestivamente intitulada «Sacré Charlemagne». Porém, quando a pequena despontou na TV, com um tantalizante chupa-chupa (pirulito) na mão, a cantar «Les Sucettes», de Gainsbourg, a carreira de ambos disparou com a iridescência de um cometa. A letra continha um duplo sentido bastante evidente, que só a intérprete não percebeu: «Annie aime les sucettes/ Les sucetts à l'anis/ Les sucetts à l'anis/ D'Annie/ Donnent à ses baisers/ Un goût anis/ Sée quand elle en a sur sa langue/ Que le petit bâton/ Elle prend ses jambes à son corps/ Et retourne au drugstore». Quando lhe explicaram o sentido, ela nunca mais dirigiu a palavra a Gainsbourg.

A partir de então, o pária niilista era uma coqueluche mediática. Após anos como um ícone da empertigada Rive Gauche, o cantor-compositor era recrutado pelo «mainstream», como um artesão de sucessos. Gainsbourg habitou até uma comédia musical na televisão, flanqueado por Anna Karina e Jean-Claude Brialy. Mas o melhor, ou pelo menos o mais bombástico (sejamos precisos: o abalo sísmico) ainda estava por vir.

Naquela época, ele teve um caso com a portadora de um lendário beicinho, uma certa Brigitte Bardot. Na sua autobiografia («BB», ed. Grasset, 1996), a diva evoca o amante com um nó cego na garganta: «Era uma vez Gainsbourg, príncipe louco de um reino demasiado exíguo para ele. Ocultava a sua vulnerabilidade atrás de uma insolente agressividade que, à imagem do seu coração e da sua face, não representava mais do que a parte visível desse iceberg incandescente e generoso.» Bardot e o iceberg incandescente gravaram juntos clássicos como «Bonnie and Clyde» e «Harley Davidson». Contudo, depois de gravarem «Je T'Aime… Moi Non Plus» (que vegetou nas prateleiras da Philips durante 17 anos!), os dois se separaram para sempre.

O que aconteceu? Bom, aconteceu que Brigitte, apesar daquela fachada de pecado capital ambulante, considerou que a tal canção era demasiado ousada e vetou o lançamento. Gainsbourg encolheu os ombros e procurou outra parceira. Que foi, como reza a história, Jane Birkin.

Birkin era uma actriz de cinema inglesa (consta que, quando a viu pela primeira vez, Serge resmungou: «As inglesas são tão finas que não têm peito nem bunda!» - o que era injusto com Jane). Diga-se a bem da verdade que ela já tinha um certo nome, graças à sua participação no mítico filme de Antonioni, «Blow Up», onde aparecia como viera ao mundo (há mundos com sorte).

A segunda versão de «Je T'Aime… Moi Non Plus» foi distribuída em 1968, e imediatamente assumiu o estatuto de hino erótico daquele ano trepidante. A canção foi censurada pelo Vaticano (que implorou ao Governo italiano para a banir) e sumariamente proibida em países que iam do Brasil à Suécia, passando por Espanha. O escândalo atingiu tais proporções que, em Inglaterra, a gravadora Fontana simplesmente renunciou ao disco, não obstante ele estivesse engastado no segundo lugar do «Top 10». Uma pequena companhia, a Major Minor, rapidamente adquiriu os direitos da canção e fez um relançamento, que por sua vez galgou para o primeiro lugar - a única música francesa que até hoje realizou tal façanha em Inglaterra.

Nos Estados Unidos, nem se pôs a hipótese de «Je T'Aime» tocar na rádio - se ainda fosse na Casa Branca de Bill Clinton! Sim, era a época do amor livre, mas não exageremos. Não era tanto a letra que arrepiava os cabelos do Tio Sam (afinal, para a maior parte dos americanos, francês é sânscrito), mas os gemidos concupiscentes de Jane Birkin, que tornavam «visualmente» inteligíveis os seguintes versos lascivos: «Je vais, je vais et je viens/ Entre tes reins/ Et je/ Me re-/ Teins…»

Proliferaram versões de «Je T'Aime» em oito idiomas, incluindo o japonês. Seis meses depois, dois milhões de cópias tinham sido vendidas. Apesar da ausência de divulgação radiofónica e de «marketing» profissional, com aquela canção, Serge Gainsbourg tornou-se o cantor francês de maior sucesso de todos os tempos nos EUA. O êxito foi tanto que a própria Jane Birkin, que gemia esplendidamente mas cantava tão bem como um pato, manteve uma longa carreira de intérprete em França.

Nos anos 70, Gainsbourg experimentou outros caminhos. Realizou até anúncios para a TV e gravou com os músicos de Bob Marley. Num concerto em Estrasburgo, enfrentou coléricos e ruidosos pára-quedistas do exército francês, zangados com a versão impertinente de «A Marselhesa». A situação era tão explosiva que os Wailers de Marley se recusaram a subir ao palco, apesar de toda a erva para ganhar coragem. Gainsbourg foi sozinho e começou a cantar «a capella», o hino francês original, sem acompanhamento musical, perante aquela multidão ribombante. Acabou ovacionado.

Gainsbourg era um misógino incorrigível, tendência que fica clara em canções como «La Femme des Uns Sous le Corps des Autres». Não postulava a «libertação sexual» (seja lá o que isso signifique), mas o hedonismo individual. Todavia, as suas obras foram memoravelmente interpretadas e gravadas por senhoras como Petula Clark, Juliette Greco, Françoise Hardy, Barbara, Dalida, Nana Mouskouri, Anna Karina, Catherine Deneuve e Brigitte Bardot. Com aquela cara de quem abusa do absinto, foi também um feio irresistível, que circulava por anónimos lençóis de prostitutas e seduzia as mais aristocráticas, olímpicas e desejadas mulheres. Como ele dizia: «A fealdade é superior à beleza, pois é permanente.» Por outro lado, sabia gozar de si mesmo, quando era traído. Só se zangou um bocadinho uma vez, ao saber que a namorada não apenas tinha outro, como também cozinhava para ele na sua própria casa: «Corno sim, mas não anfitrião!»

Gainsbourg era contraditório e sardónico o bastante para, quando lhe pediram para escrever uma canção contra as drogas - a ele, o paladino de todos os excessos -, responder afirmativamente. Assim, produziu mais um panfleto lírico e pungente: «Aux enfants de la chance/ Qui n'ont jamais connu les transes/ je dirai en substance/ Ceci/ Touchez pas à la poussière d'ange/ Angel dust/ Zéro héro à l'infini/ Je dis dites-leur/ De casser la gueule aux dealers/ Qui dans l'hombre attendent l'heure/ L'horreur/ de minuit.»

Prismático no seu talento, é também o cineasta «underground» de quatro filmes, entre os quais «Equateur», unissonamente vaiado no Festival de Cannes, e «Charlotte For Ever», tardiamente apaparicado por Jean-Luc Godard. Antes, tinha provocado o enésimo ultraje, com a letra e o teledisco da canção «Lemon Incest», no qual aparece estendido numa cama e vestindo apenas as calças do pijama, e a sua filha Charlotte, então com 14 anos, ajoelhada ao seu lado, vestindo somente a parte de cima do dito pijama. Mas explicou-se: «Disseram que era incesto. Mas não: era a vertigem do incesto.»

A derradeira Lolita de Gainsbourg foi Vanessa Paradis (hoje casada com Johnny Depp), para quem compôs 11 músicas do disco «Variations sur le Même T'Aime» - e de quem dera uma definição tipicamente gainsbourguiana: «Ela emana uma aura de sedução própria das estrelas. Paradis (Paraíso) é o inferno!»

Afinal, qual o segredo da «persona» idiossincrática de Serge Gainsbourg, entranhada quer na sua vida quer na sua obra? No que toca à sua música, é importante realçar a qualidade melódica contagiante, e o humor com que ele zomba das suas próprias atitudes, quase tanto como dos supostos puritanos que tão encarniçadamente tentava ofender. E a sua bufonaria satírica oferecia aos ouvintes uma ferramenta para resistirem aos aspectos mais embotadores de uma vida meramente consumista.

Mas Gainsbourg é, sobretudo, o poeta maldito e o trovador popular-erudito, autor de preciosidades como «La Javanaise», «Je Suis Venu Te Dire que je M'En Vais», «Initials B.B.», «Dieu Fumeur de Havanes», «La Décadence» e tantas outras. É o compositor de canções fáceis, para embolsar dinheiro fácil, mas também o visionário experimentalista. Mestre da colagem inovadora, atravessou todos os sons, do jazz ao hip-hop, passando pelo reggae e o pop, e tornou-se o mentor espiritual de importantes bandas contemporâneas, como os Divine Comedy. Introduziu em França sonoridades então inéditas naquelas paragens: o soul, os ritmos afro-cubanos («Couleur Café»). Musicou e interpretou os poetas rebeldes que amava: Musset, Nerval («Le Rock de Nerval»), Baudelaire («Le Serpent Qui Danse»). Cantando o prazer e a dor, o êxtase efémero e a mágoa visceral, parece às vezes uma combinação de Bob Dylan com Tom Waits e Leonard Cohen.

E, finalmente, é também, como acusam as suas nêmesis crispadas, o corruptor da juventude. Mas convém lembrar que o próprio Sócrates suportou a mesma acusação - e não fugiu (nem pagou o galo a Asclépio). Num daqueles dias em que uma pessoa se arrepende de sair de casa, Gainsbourg gemeu: «Fui bem sucedido em tudo - exceto na minha vida.» Vinte anos depois, a posteridade discorda dele.

 

(Texto publicado no Expresso, revista Única)

publicado por otransatlantico às 17:15
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