Quarta-feira, 14 de Julho de 2010

RESORT 1 ESTRELA (NO PEITO)

http://sensoincomum.zip.net/images/auschwitz2.jpg

 

 


 

Roubaram a inscrição de Auschwitz, “O Trabalho Liberta”, o maior humor negro de sempre. Sei quem NÃO foi o ladrão: o presidente do Irão, para quem o Holocausto nunca existiu (é uma pena, mas ele corrigirá a incúria riscando Israel do mapa, com uma borracha, com cuspo ou empoleirado numa bomba, como o doutor Strangelove).

Tinha uns dias livres-pensadores e pensei: visito o Danúbio Azul ou ouço Mozart em Salzburg (o único lugar do mundo em que Mozart é kitsch). Visitei Auschwitz. Morbidez? Niilismo? Necrofilia? Não. Eis a sua lição: o horror que podemos infligir aos outros nunca terá limites. O que me dá calafrios, na verdade, é – com tal currículo - o nosso próximo horror. Parti de Cracóvia. Os Polacos não são nenhuns santos nessa história. Lech Walesa, a perder a Presidência, chamou ao rival “judeu”, como uma pronúncia excrementícia. Depois tergiversou com um sorriso amarelo: “Quem me dera ser judeu, pois teria mais dinheiro!” E pensar que fui demitido por um jornal de esquerda por defender o Solidarność, na época “evidentemente” um lacaio do imperialismo….

Há um autocarro chique mas não há placas a dizer Auschwitz. Transpomos um prédio com um snack-bar (lanchonete), um quiosque de fotos e uma bilheteira. Aí marcavam os prisioneiros com os números ignóbeis e indeléveis, rapavam-lhes o cabelo e a humanidade, e os oficiais escolhiam as escravas sexuais judias. Interroguei-me por que razão há um pavilhão destinado às vítimas de cada nacionalidade – mas os judeus não aparecem mencionados em lado nenhum. Pergunto a um guarda, com ar afável. Ele aponta o pavilhão 37, trancado com uma corrente. Lá dentro apodrece o espólio torpe dos judeus: os cabelos, as pernas de pau dos veteranos que lutaram  e sucumbiram pela Polónia na I Guerra Mundial, os sapatos desirmanados das crianças (que nunca ficaram apertados), os poucos dentes de ouro dos poucos que podiam pagar dentes auríferos (não, não eram piratas do Caribe).

O autocarro segue, mas não pára em Auschwitz III. Lá, foram escravos, entre outros, Primo Levi e Elie Wiesel. Saio e vou a pé. Chega-se a um portão novo, com arame farpado e guardas a sério com metralhadoras, hospitaleiros como Cérberos. O campo estava a bombear fuligem para o céu! Nunca foi fechado. I.G. Farben, a fábrica de produtos químicos que controlava o “trabalho” em Auschwitz, permaneceu a operar, alegando que tinha de pagar indenizações aos antigos escravos. OK, em termos de humor negro, empatou com a placa da entrada. Em 2004, prestes a ser obrigada a fazê-lo, abriu falência – mas não sem antes tirar da cartola a Agfa, a BASF, a Bayer e a Hoechst.

Vou-me embora com as unhas quase a cortarem as palmas  lívidas das mãos. Pergunto-me: seria eu capaz de limpar as câmaras de gás para me deixarem viver mais um mês? De encher os fornos?

 

(CRONICA PUBLICADA NA REVISTA DE DOMINGO DO CORREIO DA MANHÃ)

publicado por otransatlantico às 18:40
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