Sábado, 10 de Julho de 2010

JACQUES, LE FATALISTE

A Bélgica está à beira de uma secessão. Como sabem, tem duas populações, os Valões e os Flamengos, com as suas próprias línguas - e cada vez mais hostis. Estive em Bruxelas há 10 dias e a vitória eleitoral da Nova Aliança Flamenga radicalizou o antagonismo entre a Flandres (norte) e a Valônia (sul). A própria capital é um atol francófono em Flandres. Para terem uma ideia de onde já chegou o extremismo, 99% das livrarias de Bruxelas só têm livros em flamengo (ou em inglês) - em francês, bulhufas (nicles)! E os cardápios (ementas) dos restaurantes vêm em flamengo (dialeto do holandês). É um exemplo arrepiante da crise de identidade - antropológica e filosófica -  de toda a União Européia. Acudiu-me à memória o espírito que era uma síntese transcendente da encrenca belga e um admirável artista e ser humano: Jacques Brel (morto há 32 anos).

Brel era um caleidoscópio militante - e coerente. Filho de pai flamengo, era francófono, mas satirizava tanto a sociedade burguesa de Bruxelas (em "Les Bourgeois") como o chauvinismo novo-rico dos valões ("Les Flamandes"). Amava a Bélgica, a precária harmonia universalista, como explica à filha no vídeo 1. Com saco cheio do maniqueísmo recíproco, marchou para Paris, onde foi descoberto por Jacques Canetti (irmão de Elias Canetti, Nobel de literatura). Canta com Georges Brassens e aí não pára mais. Chega a ultrapassar 365 shows em um ano (em 1974, sete espetáculos em uma noite). Em 77, estava um bagaço: grava o último disco ("Brel"). Apesar de recusar toda a publicidade, o mais de 1 milhão de álbuns estavam reservados antes da edição e mais 700 mil foram comprados no primeiro dia de vendas. Morreu pouco depois, deixando, entre um colar de pérolas musicais, a súplica - sublime/abjeta - do amor como pedinte rastejante que renuncia a qualquer amor-próprio: "Ne me quitte pas" (vídeo 2, versão Maysa). Hoje, os valões juram que ele era valão, e os flamengos que era flamengo (até agora ninguém disse que era Fluminense). Recorda-me a frase de Einstein: "Se a minha Teoria da Relatividade estiver certa, a Alemanha dirá que sou alemão e a França me declarará 'cidadão do Mundo'. Mas, se estiver incorreta, a França dirá que sou alemão, e os alemães que sou judeu".

publicado por otransatlantico às 15:57
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4 comentários:
De Ricardo a 10 de Julho de 2010 às 18:13
Os três meses que passei na Bélgica, serão inesquecíveis na minha vida. É um país único, com sua tristeza " brelineana" , passei regado a suas canções que tocavam diariamente nas rádios, e na casa da minha amiga. Naquela época o Francês era lingua predominante em Bruxelas, e o Flamon estava presente nas placas e outdoors bilingues.
A sensação era que aquilo minguava e estava pra acabar um dia com a morte da última vovó flamenca!

Acredite se quiser! foi lá , em um bar com o sugestivo nome " Mort subite" ( se não errei na grafia) , que comi o melhor spaguetti da minha vida!
De m.m. a 13 de Julho de 2010 às 10:44
Olá Ricardo,
Pelos vistos a velha Europa ainda te deixou saudades!
Maria
De Ricardo a 16 de Julho de 2010 às 18:37
Oi Maria!

Deixou, claro! e muitas. Você a Ana ,e aquela turma , a malta , como dizem por ai ( acertei?) são, sem dúvida , parte especial nessas saudades! Bjs!
De Anónimo a 17 de Julho de 2010 às 18:24
Ainda bem, bom sinal!
Quem sabe um dia voltas, a malta continua por aí só um "pouco" mais velhos!?!
Bjs.
Maria

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