Sábado, 10 de Julho de 2010

HITLER, MEU AMORZINHO

 

 

 

 

 

Se, como reza o equitativo provérbio popular, «atrás de todo grande homem há uma grande mulher», atrás de um genocida monstruoso como Hitler há quem? Uma sogra daquelas, que quando dá palmadinhas nas costas é para descobrir o melhor lugar onde enterrar o punhal? Nem por isso: afinal, como veremos, o Fuhrer casou-se literalmente no túmulo. Uma coisa ninguém lho nega: foi, sem dúvida, um matrimónio original - ele e a respectiva esposa enviuvaram poucos minutos depois da boda…

Esta semana as livrarias começam a receber um livro cujo título fala por si próprio: «As Mulheres de Hitler», de François Delpla. Não se trata de uma obra sensacionalista – na verdade, o autor assinou uma das biografias canónicas sobre o líder nazi, «Hitler», publicada em1999 pela prestigiosa editora Grasset. Muito judiciosamente (e seguindo a dica da judia Hanna Arendt, a quem não faltavam miolos, exceto na hora de ir para a cama com Heidegger), Delpla finta o clássico alçapão de quem disseca o protagonista do III Reich: demonizá-lo como a sobrenatural quintessência do mal, uma aberração da natureza, singular e irrepetível. Pelo contrário, Hitler «possuía algumas características que todos conhecemos bem demais».  Não se trata, claro, de branquear a besta (e muito menos de negar o Holocausto, como fazem um punhado de energúmenos). Trata-se, isto sim, «de integrá-lo na espécie de que faz parte, e cujas potenciais trevas adensa». Convém assinalar, só de passagem, que o próprio Estaline – aliado de Hitler até que este invadiu a Rússia, com quem tinha dividido irmãmente a Polónia e os Estados bálticos –, matou mais Ucranianos do que Hitler matou Judeus (ver «Gulag, Uma História», de Anne Applebaum, prêmio Pulitzer 2004), e semeou muitos mais campos de concentração. Para não falar em Mao, Pol Pot, e outros monstrengos sortidos.

A tentação de estereotipar Hitler como um avatar de Belzebu, numa metafísica maniqueísta, seduziu o escritor americano Norman Mailer, que, aos 80 anos, descreveu (no seu último romance, «The Castle In The Forest») o líder nazista como um sócio de Satanás (apresentado como «o Maestro»). Ora, claro que o antigo cabo austríaco e pintor canhestro tinha as suas extravagâncias: aquela maneira de discursar, por exemplo, que lembrava um espasmódico polícia de trânsito infestado de pulgas. Mas, mesmo aí, é bom realçar que ele exprimia-se em alemão. E, como observou alguém, «o alemão é uma língua que foi desenvolvida com o único objectivo de permitir a quem a fala cuspir nos outros, sob o pretexto de conversar educadamente».

Bem, como aconselhou um certo judeu vienense viciado em charutos (que Hitler enxotou da Áustria), espreitar a sexualidade das pessoas ajuda a compreendê-las um bocadinho melhor. Também nesse campo, Hitler já foi rotulado de tudo: sedutor, impotente, bicha louca, sadomasoquista, incestuoso – até de escatofilia. O próprio Norman Mailer explica a perversidade da personagem como uma psicopatologia: o pequeno Adolf era o fruto de um casamento incestuoso. Muito jovem, o pai de Hitler, Alois, manteve uma relação sexual com uma meia-irmã, da qual nasceu Klara, ao mesmo tempo filha e sobrinha de Alois. Apesar da diferença de idade, Klara acaba por se tornar a terceira mulher de Alois, e mãe de Hitler. O problema, para a tese de Mailer, é que ascendência do Fuhrer tem pontos obscuros: não se conhece a identidade do avô paterno, e, portanto, tudo não passa de suposição. Ou melhor, de vulgata freudiana colada com cuspo.

Questão recorrente é ainda a da homossexualidade de Hitler, postulada no livro do historiador alemão Lothar Machtan, «A Face Oculta de Hitler». Todavia, todas ligações do ditador, devidamente provadas, foram com mulheres. E há, por fim, a mirabolante versão de que o líder nazi sofria de monorquidia – isto é, tinha apenas um testículo. De fato, o relatório da autópsia do corpo de Hitler, encontrado pelo Exército Vermelho a 2 de Maio de 1945 (naquela época Estaline negou sempre o achado), sustenta que os restos mortais continham só um testículo. Numerosas biografias assumiram, portanto, que o ditador era, por assim dizer, «mono» desde a nascença, negligenciando a explicação mais lógica: o desaparecimento circunstancial do órgão durante a cremação do cadáver.

A propósito de cadáveres, depois de1945 circulou o mito da sobrevivência da Hitler, que terá simulado o suicídio e escapado do bunker de Berlim para um esconderijo (provavelmente, o mesmo de Elvis). E, claro, com a mãozinha de uma mulher, a aviadora Hanna Reitsche, apaixonada pelo Fuhrer e nazista «uber alles». Segundo essa lenda, tal dama aterrou ao pé do Bunker e resgatou o amado sob de uma chuva de obuses soviéticos, no melhor estilo Barão Vermelho. Churchill, em Londres, soltou uma gargalhada apoplética ao ouvir o disparate – mas, pelo sim pelo não, enviou ao local o historiador Trevor-Ropert, que concluiu inequivocamente pelo suicídio.

Que Hitler idolatrava a mãe e levava fenomenais surras do pai (infelizmente, como se viu, não as suficientes), não se discute. Quando Klara estava a morrer de um tumor maligno, o filho não teve coragem de lhe contar que falhara no exame para a Escola de Belas Artes de Viena. Pelo contrário, mentiu-lhe descaradamente, embora não fosse capaz de desenhar nem uma seta. A propósito de escolas, é intrigante recordar que Hitler foi condiscípulo do futuro filósofo Ludwig Wittgenstein, ainda na sua cidade natal, Linz. Pena que Adolf não tenha seguido uma das supremas proposições de Wittgenstein: «Quando não souber o que dizer, o melhor é calar-se». Como é óbvio, Hitler fez precisamente o contrário – e pelos cotovelos. Falava horas a fio e não dizia coisa com coisa.

Tudo indica que a iniciação sexual do líder nazi foi com uma prostituta. Mas a primeira mulher importante na vida dele, ainda numa fase inicial do Nacional-Socialismo, foi Winifred Wagner, casada com o filho do grande compositor Richard Wagner.  A obra de Wagner tem sido constantemente associada ao Nazismo. Mas, em primeiro lugar, trata-se de um anacronismo. Em segundo, se é certo que o músico não era flor que se cheire (como pessoa, era um cacto), o seu anti-semitismo nunca o impediu de colaborar com judeus, e de ter como chefe de orquestra um homem elucidativamente chamado Hermann Levi. Winifred era de outra praia: tão nazi como uma suástica. Depois do fiasco do putsch de 1927, em Munique, Winifred visitou Hitler na prisão, com um volumoso embrulho com cobertores, roupas e livros. Chegou a viajar aos EUA, só para convencer Henry Ford a interessar-se pela ideologia nazista – e conseguiu-o plenamente. Outra da mesma estirpe foi Elisabeth Nietzsche, irmã do filósofo Nietzsche. Reacionária e anti-semita, quando o pensador perdeu o último parafuso e foi internado num sanatório (morreu em 1900, mas estava civilmente incapacitado desde 1889), Elizabeth responsabilizou-se pela edição das obras dele, censurando-as, distorcendo-as e por vezes reescrevendo-as, a ponto de fazer o pobre lunático lembrar um boneco cujo ventríloquo fosse Joseph Goebbels.

Como em certos aspectos os homens são todos iguais, Hitler gostava delas novas. A estonteante Maria Reiter («Mitzi») tinha apenas dezasseis anos quando ele a comeu. Mas foi sol de pouca dura: os rumores ameaçavam prejudicar a carreira política de Adolf (afinal, ela era menor). Resultado: um dos esbirros de Hitler obrigou a rapariga a rubricar um ato notarial segundo o qual não consumaram nenhuma relação sexual. Em seguida, o futuro Fuhrer arrastou a asa por uma sobrinha em primeiro grau, Angelika, mais conhecida por Geli. Quando esta andava pelos quinze anos, iam com frequência a um lago perto de Munique, onde as jovens se banhavam nuas. O tio divertia-se a fazer ricochetear pedras na água (aposto o pescoço como nem no lago acertava). Hitler arranjou um marido para Geli, um certo Maurice, mas continuou a rondá-la como um tubarão rodeia um náufrago numa tábua. Em 1929, passou a viver sozinha com o tio, enquanto o tal Maurice sumia do mapa. Em 1931, Geli matou-se com uma bala no peito, usando um revólver de Hitler. Este não se dignou a cancelar o comício marcado para o dia seguinte, em que discursou com o histrionismo destrambelhado do costume.

De acordo com «As Mulheres de Hitler», Eva Braun é, neste conto «fantástico e cruel», a Cinderela que se apaixona pelo príncipe. Um Príncipe das Trevas, convenhamos. Depois de tal paixão, alguém ainda poderá professar a opinião de que «gosto não se discute»? A seguir às filmagens de «Quanto Mais Quente Melhor», Tony Curtis resmungou que «beijar Marilyn Monroe era como beijar Hitler». Duvido. E duvido ainda mais que beijar Hitler fosse como beijar Marilyn Monroe. Em todo o caso, Eva ia nos 17 anos quando fez o Fuhrer lamber os beiços – e em pouco tempo assumiu a vaga deixada por Geli. E mimetizou a finada sobrinha quase demasiado bem: na noite de 1 de Dezembro de 1932, Eva disparou uma bala sobre o próprio pescoço, depois de escrever ao amante uma carta cujo teor permanece desconhecido. O ferimento foi ligeiro, mas, três anos depois, houve outra tentativa: emborcou 20 comprimidos de Phanadorm, um sonífero – foi salva casualmente por uma amiga. Aos poucos, o estatuto de Eva junto de Hitler prosperou. Já em 1938, o ditador recebia-a com frequência no Berghof, o seu ninho de águia (ou de abutre), onde ela dispunha de um quarto, separado do dele apenas por uma casa de banho (banheiro). Ninguém sabe quão engarrafado era o trânsito naquele lavabo. Depois da guerra, o médico pessoal de Hitler revelou que Eva lhe pedira comprimidos para estimular o desejo masculino. Razões para ciúmes de Eva, havia muitas. A principal chamava-se Leni Riefenstahl.

De todas as mulheres de Hitler, Leni é de longe aquela sobre a qual há mais documentação. Ajudou o fato de  morrer aos 101 anos, em 2003. Em 1987, a própria cineasta publicou umas copiosas (e fajutas) Memórias, e em 1993 estreou-se um filme de três horas sobre a sua obra, «O Poder das Imagens», de Ray Muller. E acaba de sair, nos EUA, «The Life and Work of Leni Reifenstahl», de Steven Bach, que arruma a questão. Dando o nome aos bois (ou melhor, à mulher do boi), Riefenstahl era aquilo a que, outrora, costumava chamar-se (decerto injustamente) uma cortesã. Enfim, e os mais sensíveis que fechem os olhos AGORA! – uma grandessíssima vaca. Sexualmente insaciável, preferia os esportistas vistosos. Mas abria assíduas exceções para qualquer homem que pudesse ajudar a sua carreira. E, em meados dos anos 30, ninguém melhor do que o Fuhrer. Quando acabou de ler o «Mein Kampft», ela ronronou para o amigo no outro lado do lenço: «Este é o tipo!»

Uma vez, na praia, Hitler abraçou a convidativa Leni, que não se fez de rogada. O líder nazi, porém, elevou as mãos ao céu e bradou: «Não tenho o direito de amar uma mulher, enquanto não completar a minha obra». Riefenstahl achou ótimo: teria a fama e o proveito, sem a canseira. Foi convidada para realizar, em Nuremberga, o documentário sobre o primeiro congresso do Partido Nacional-Socialista depois da chegada ao poder, em 1933. O filme, sugestivamente intitulado «O Triunfo da Vontade», obteve o primeiro prémio no Festival de Veneza e a medalha de ouro na Exposição Universal de Paris. Em 1936, ela rodou «Olímpia», sobre os Jogos Olímpicos de Berlim. Com tais obras, modelou quase toda a iconografia e o simbolismo visuais que ainda hoje detemos do nazismo – ou seja, uma estetização romântica e pomposa dos valores fascistas. É significativo que mesmo Susan Sontag, uma inimiga ferrenha de Leni, tenha considerado aquelas duas fitas «os melhores documentários jamais realizados». Para começo de conversa, não eram documentários (como Bach demonstra conclusivamente), na medida em que filmavam uma «realidade» encenada e postiça. Os nazis forneceram à cineasta milhares de extras, para que ela ensaiasse, exaustivamente, as suas geometrias humanas dos corpos arianos. Ou seja, cenas tão espontâneas como as coreografias de Busby Berkeley nos musicais da Metro.

Por fim, e no fim, Eva Braun reconquista a ribalta. Em Outubro de 1944, esta mulher ainda jovem (32 anos), redige o seu testamento. Em 7 de Março de 1945, fecha-se no bunker de Berlim, junto com Hitler. No dia 20 de Abril, há naquela cripta uma festa lúgubre: o quinquagésimo sexto aniversário do Fuhrer. Restava apenas uma via aberta, para sudoeste – mas o líder nazi recusou-a, autorizando os que quisessem partir (o primeiro a sair com o rabo entre as pernas foi Goering). A tímida Eva declarou: «Sabes que fico contigo, não deixo que me afastem!». Então, pela primeira vez, beijou-o na boca em público. No dia 28, Hitler desposou a Fraulein, treze anos depois do primeiro encontro. A noiva assinou «Eva Hitler» na certidão, e cortou o nome de solteira. No dia 30, o Fuhrer apertou a mão de todos os presentes, e o casal se retirou para os seus aposentos. Lá, Eva emborcou uma ampola de cianeto e o marido deu um tiro em cheio nos miolos (foi preciso pontaria). Mais chocante foi o gesto do casal Goebbels: também no bunker, não apenas suicidaram-se como assassinaram os seus seis filhos pequenos.

Hitler afirmou frequentemente que a multidão é uma mulher, e que as massas adoram ser dominadas como as esposas. Para ele, a sua verdadeira cônjuge era a própria Alemanha, uma nação que idealizava como uma donzela casta e pura, protetora e tranquilizadora. Pensando bem, o pior de tudo não foi essa tara funesta. Foi que a Alemanha correspondeu-lhe.

publicado por otransatlantico às 11:57
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