Segunda-feira, 28 de Junho de 2010

ENTREVISTA: ALI SMITH

http://www.clairemcnamee.com/images/225.jpg

 

 

Aos 44 anos, a escocesa Ali Smith é a nova sensação da literatura anglo-saxónica. Depois de dois volumes de contos com títulos provocantes («Other Stories and Other Stories» e «The Whole Story and Other Stories») e um primeiro romance admirável («Hotel  World», também editado em Portugal pela Bico de Pena), «A Acidental» foi saudado como uma obra-prima. O livro açambarcou prémios importantes dos dois lados do Atlântico (como os renhidos e prestigiados Whitbread e Orange), e não ganhou o Booker Prize por um triz .

 

- PAULO NOGUEIRA: Considera que, apesar das idiossincrasias de cada escritor, existe uma ficção escocesa demarcada da inglesa? Por exemplo, Alasdair Gray, Neil Munro, Irvine Walsh e Ali Smith – prosadores tão diferentes entre si – têm algo em comum?

 

ALI SMITH: Sem dúvida. Sou afortunada, enquanto escritora, por beneficiar de uma literatura cheia de vitalidade, e de desfrutá-la ao longo de toda a minha vida, através do século em que nasci. Trata-se de uma literatura que sabe que as vozes muitas vezes provêm das orlas, de qualquer nicho, e podem assumir qualquer forma. E não há nada de mais importante para um escritor, do que saber disso. É também uma literatura produzida pela realidade – pelas circunstâncias da história – e portanto pode ser (na verdade, é) plurívoca.

 

- PN: Foi difícil a transição do conto para o romance? Trata-se, afinal, apenas de uma questão de escala? Por que os editores de hoje não gostam de livros de contos? O tamanho importa?

 

A.S.: (Risos) É somente uma outra forma, com as suas próprias dificuldades. Romances são difíceis porque são longos, contos são difíceis porque são curtos. Mas ambos dependem para funcionar de uma estrutura muito precisa, cuja essência é a própria linguagem. Contos são muito flexíveis, conseguem narrar o que bem entendem, ao passo que na dimensão do romance isso parece menos viável. Mas não é pecado transpor fronteiras, combinar géneros, permitir que os romances adotem formas elásticas, como os melhores contos. É um disparate os editores julgarem que os leitores não apreciam contos, só porque não descobriram como vendê-los. Isso é uma gestão mentirosa.

 

PN: Em A Acidental, há uma conjugação de fantasia e realismo, embora diferente do realismo fantástico. A protagonista pode ou não ser real, mas os interlocutores dela são tridimensionais até à raiz dos cabelos…

 

A.S: A intenção foi essa… Em muitos sentidos, é um romance sobre como as pessoas reduzem os outros a bidimensionalidade. Portanto, são surpreendidas quando aqueles se revelam tridimensionais, contra todas as expectativas.

 

PN: A personagem Michael ensina literatura, e Eve escreve ficção… Como disse T.S. Eliot, cada vez mais livros são sobre livros?

 

A.S.: Livros geram livros. São os livros, não os escritores, que produzem os livros mais apaixonantes. A Acidental realmente se interroga sobre aquilo que um livro faz, o que as histórias fazem, e como repercutem no mundo real. Todos os meus livros se debruçam sobre esta questão.

 

PN: A sua obra reflete uma preocupação intensa com as vozes narrativas. Em A Acidental manipula múltiplos pontos de vistas e correntes de consciência. É uma escritora muito disciplinada na planificação do romance? Reescreve muito, até considerar o livro concluído?

 

A.S.: Uma voz engendra a si própria através das coisas que diz, e a minha responsabilidade – como ouvinte – é atentar para o que ela articula. Tal operação envolve, digamos, 50 por cento de intuição e 50 por cento de carpintaria. O que, aliás, corresponde ao processo incessante de verificar o que esta voz pretende e aonde deseja ir, ao mesmo tempo em que exprimimos a sua forma literária. Não há nada senão vozes numa história. Não há histórias sem vozes. E, claro, não há vozes sem história.

 

 

PN: Em A Acidental reina uma ambiguidade intrigante. A protagonista parece má, mas afinal faz o bem, operando uma espécie de catarse …

 

A.S:: É verdade. Creio que se trata de um livro otimista – para a minha própria perplexidade. De certa forma, o que ele diz é o seguinte: repara que outras coisas, diferentes interpretações, novas estradas podem ser não apenas possíveis mas proveitosas.

 

PN: Durante algum tempo, deu aulas de escrita criativa. O que pensa desta frase: «Escrever não se ensina, apenas se aprende»?

 

A.S: A estrutura da escrita (no sentido de «editing») pode ser ensinada. A confiança pode ser transmitida a um autor. A disciplina pode ser aconselhada. Sugestões podem ser dadas. Eu não remodelaria um livro, mas apresentaria os meus conselhos.

 

PN: Os prémios são úteis para um escritor? Ou ele é um monge, para quem fama e dinheiro não interessam?

 

A.S: Os prémios dão mais segurança ao autor, no mundo selvagem da edição. E ajudam a divulgar uma obra. Por exemplo, a lista de finalistas do último Orange conferiu notoriedade a um romance excelente – Everyman Rules for Scientific Living, da sul-africana Carrie Tiffany -, que de outra forma talvez tivesse passado em brancas nuvens. Mas os livros não são os prémios – e estes podem até resultar em uma distração do verdadeiro trabalho da escrita, situado entre a intimidade e a transgressão. Não me importava nada de ser um monge, na medida em que não conseguimos escrever com uma banda a tocar à nossa porta. Por falar nisso, estou prestes a abraçar outra vez a reclusão. Conhece alguma caverna secreta em Portugal em que eu possa viver? Ou algum convento que me aceite?

 

(Entrevista publicada no semanário "Expresso")

publicado por otransatlantico às 17:21
link do post | favorito
Comentar:
De
( )Anónimo- este blog não permite a publicação de comentários anónimos.
(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 


.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Setembro 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
30

.posts recentes

. ...

. E AGORA, COM VOCÊS, HITLE...

. “CONSIDEREI ESCREVER UM R...

. CLARO QUE ELE ADORA PITBU...

. PASSAGEM PARA A ÍNDIA

. O MESTRE MAGISTRAL

. MACACO É A SUA AVÓ!

. A MENSAGEM NUMA GARRAFA

. ALTA COSTURA E ALTA CULTU...

. AGENTE FINO É OUTRA COISA

. TREVAS AO MEIO-DIA

. ALICE NO PAÍS DAS MARAVIL...

. O TABACO SALVA!

. PINTAR O INSTANTE

. LEVANTADO DO CHÃO

. VAN GOGH PINTAVA O CANECO

. FAMA E INFÂMIA

. CASAIS DE ESCRITORES: PAL...

. O DONO DA VOZ

. LIVROS? DEUS ME LIVRE! 1 ...

. CHURCHILL E OS CHARUTOS

. O IMPACIENTE INGLÊS

. ENTREVISTA JAVIER CERCAS

. OSLO QUEBRA O GELO

. O APOLO DIONISÍACO

. O PAI DO SNOOPY

. O CACHIMBO PENSANTE

. ÇA VA?

. TRÊS ALEGRES TIGRES

. O ARCANJO OBSCENO

. RESORT 1 ESTRELA (NO PEIT...

. JACQUES, LE FATALISTE

. HITLER, MEU AMORZINHO

. O ETERNO RETORNO DO ETERN...

. ENTREVISTA: ALI SMITH

. O BARDO DO FARDO E O TROV...

. A MÚSICA DAS ESFERAS IV

. ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA D...

. SEXO E OUTRAS COISAS EMBA...

. ALI E ALÁ

. VIVA LA MUERTE?

. O BELO MALDITO

. REPERCUSSÃO DESTE BLOG!

. DEBAIXO DO VULCÃO

. PUSHKIN, O EMBAIXADOR E E...

. A ÚLTIMA CEIA DO MODERNIS...

. MAILER, VIDAL, CAVETT

. O REI DESTA SELVA VAI NU

. QUEM TEM K SEMPRE ESCAPA

. ENTREVISTA UMBERTO ECO

.arquivos

. Setembro 2011

. Abril 2011

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

.tags

. todas as tags

.links

.subscrever feeds