Segunda-feira, 21 de Junho de 2010

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA DO CEGO

 

 

 

José Saramago

José Saramago

 

 

(Cronica publicada há cerca de 6 meses na "Revista de Domingo", do Correio da Manhã, no lançamento de "Caim")

 

 

Ao contrário da maioria dos meus pares, literariamente prefiro Saramago a Lobo Antunes – mas, politicamente, Saramago. é um bronco (assim é que se arranja dois bons inimigos de uma cajadada só). Ao promover o romance “Caim”, Saramago disse que a Bíblia é um “manual de maus costumes”. Não discuto a fé, pois ela não é provável cientificamente (o que não impede que o decodificador do Genoma Humano, Francis Collins, seja um tolerante cristão). A birra de Saramago. (cujos argumentos estão ao nível dos de “O Código Da Vinci”) é mais velha que Matusalém: o justo que sofre injustificadamente, o sofrimento inocente. Está na própria Bíblia: Jó. Leibniz chamou-lhe teodiceia (justiça divina). Porque diacho havia Deus de consentir o mal no mundo que Ele próprio criara? A resposta de alguns é o livre-arbítrio: Deus não quer crentes/escravos: só há moralidade na liberdade. O chilique de Saramago lembra o ressentimento do qual Nietzsche fala: não suportamos as adversidades, então culpamos algo (no caso, Deus), e sonhamos com um mundo sem dor (dos homens bonzinhos e virtuosos de Rousseau). Tal crítica é, em si, uma forma de covardia diante da dureza da vida. O escritor ignora que não é o “fator Deus” que cria a besta-fera no homem, mas o “factor homem” que gera as atrocidades históricas de que Saramago, muito selectivamente, se queixa. A civilização ocidental foi erigida sobre 3 pilares: a ética cristã (com a sua inédita noção de que a humanidade é uma só e de que todos somos iguais em dignidade), a filosofia grega e a administração e o direito romanos. Saramago renega-os - crê numa outra Escritura Sagrada (o Manifesto Comunista:  a religião é o ópio do povo). Acusa a Deus de não amar as suas criaturas (hã? E “Ama o teu próximo como a ti mesmo?”), – ao contrário dos seráficos Fidel Castro e Kim Il-Jong, possivelmente.Todas as tentativas de fundar um “Paraíso Terrestre” culminaram em inferno (Gulags, etc). O Nobel não entende patavina da natureza humana: quem nunca, jamais, em tempo algum sentiu inveja (a “marca de Caim”)? O cristianismo diz que devemos escolher o bem – não matar o nosso irmão por causa da dor-de-cotovelo. Depois dos anátemas de Saramago contra a Bíblia, fico à espera das críticas dele ao “Corão” (jihad incluída).

(Cronica publicada há cerca de 6 meses na "Revista de Domingo", do Correio da Manhã, no lançamento de "Caim")

 

 

http://aeiou.expresso.pt/imv/0/322/313/1-jose-saramago-74fc.jpg

 

 

O momento mais raso da biografia pública de Saramago foi quando dirigiu o jornal "Diário de Notícias", no período ideologicamente turbulento de 1975. Ao assumir, anunciou: "Quem não está com a Revolução, é melhor não estar neste jornal". Os editoriais apontavam alegremente para o porvir radioso da sovietização de Portugal. Quando cerca de 30 jornalistas assinaram um documento de protesto contra a falta de pluralismo no diário, foram (eufemismo sinistro usado em Portugal para expurgos) "saneados". Anos depois, em entrevista ao jornal brasileiro "Folha de São Paulo", Saramago assumiu a responsabilidade da decisão.

Não é verdade que Saramago iniciou a sua ficção já sexagenário - mas quase. "Levantado do Chão", um romance importante, foi editado quando ele tinha 58. Porém, mesmo em Portugal só se tornou realmente conhecido após "O Memorial do Convento", a meu ver a sua obra suprema, a par de "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Apesar de romancista serôdio, era um ficcionista nato, com um capacidade de efabulação exuberante, devidamente controlada pela técnica rigorosa mas não esquemática. Derrapou quando, sobretudo depois do Nobel, arvorou-se em sábio oracular, reduzindo o dinamismo lúdico dos romances à alegorias (Borges sempre advertiu contra elas, e sempre com razão) virtuosas e edificantes, ainda que cheias de fúria e ranger de dentes, com "mensagens" encripitadas. Como o pomposo "A Caverna", em que conjuga Platão e críticas panfletárias aos shopping-centers. As narrativas tornaram-se cada vez mais opacas, rectilíneas e unívocas, em vez de prismáticas, sinuosas e polifónicas.

Um depoimento pessoal. É sempre melindrosa a questão "o artista" e "a sua arte", o criador e a criação, a pessoa real e a obra fictícia. Para ficar apenas nos casos de grandes escritores, e em exemplos recentes, biografias definitivas atestaram que V.S. Naipul (também Nobel) e John Cheever não eram flor que se cheirasse - na verdade, eram uns cactos humanos. Conheci Saramago quando ele próprio ainda não era  célebre, embora já fosse conhecido no âmbito luso. Tanto não era célebre que fazia a ronda dos jornais, para divulgar os seus livros. Pois bem: eu acabara de chegar a Portugal, quase imberbe, e tentava a minha sorte no meu primeiro jornal português (um semanário já finado). Um belo dia Saramago lá apareceu, informando que a sua editora patrocinaria uma jornada de dois dias, num autocarro (ônibus), para a badalação do livro "Viagem a Portugal" (não ficção). E lá fui eu na excursão, juntamente com mais uns 20 jornalistas culturais de diferentes publicações, ciceroneados pelo autor (na época, Saramago ainda ia no seu primeiro casamento, e a respectiva mulher também seguia a bordo).

Eu era quase um adolescente, patologicamente tímido e ensimesmado. Estava em Portugal há 2 meses, mais ou menos caído de paraquedas, e aqui acabaria por expatriar-me (coisa que até então jamais considerara). Não conhecia vivalma, nunca tinha visto mais gordo nenhum dos meus colegas. Entrincheirei-me no assento mais recôndito do autocarro, inibido até à raiz dos cabelos, ao mesmo tempo a fingir-me de morto e de translúcido. Pois, em determinado momento da viagem, Saramago sentou-se ao meu lado. Fazia parte do protocolo e da boa educação, claro, no seu papel de anfitrião e maior interessado na publicidade. Mas não se levantou mais até chegarmos ao hotel - e, a partir daquele instante, "adoptou-me". Nas andanças a pé pelos lugares descritos no livro, flanqueava-me e explicava-me coisas. Era muito, muito inteligente e (já nem falo em literatura) um erudito em história e antropologia ibéricas (postulou a integração de Portugal e Espanha numa Federação Ibérica). Naquela noite, vi neve pela primeira vez na minha vida. Muitos anos depois, Saramago já nobelizado, transfigurei aquele encontro numa passagem do meu romance O SUICIDA FELIZ.

Saramago morreu feliz. Claro que um Nobel ajuda. Mas, sobretudo, morrer com a mulher amada (o amor, como a literatura, despontaram tardiamente), a espanhola Pilar, a segurar-lhe a mão e a sussurrar-lhe as palavras que não apenas um escritor, mas qualquer um de nós, quer levar consigo quando chegar o ponto final.

 

 

publicado por otransatlantico às 10:09
link do post | comentar | favorito

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Setembro 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
30

.posts recentes

. ...

. E AGORA, COM VOCÊS, HITLE...

. “CONSIDEREI ESCREVER UM R...

. CLARO QUE ELE ADORA PITBU...

. PASSAGEM PARA A ÍNDIA

. O MESTRE MAGISTRAL

. MACACO É A SUA AVÓ!

. A MENSAGEM NUMA GARRAFA

. ALTA COSTURA E ALTA CULTU...

. AGENTE FINO É OUTRA COISA

. TREVAS AO MEIO-DIA

. ALICE NO PAÍS DAS MARAVIL...

. O TABACO SALVA!

. PINTAR O INSTANTE

. LEVANTADO DO CHÃO

. VAN GOGH PINTAVA O CANECO

. FAMA E INFÂMIA

. CASAIS DE ESCRITORES: PAL...

. O DONO DA VOZ

. LIVROS? DEUS ME LIVRE! 1 ...

. CHURCHILL E OS CHARUTOS

. O IMPACIENTE INGLÊS

. ENTREVISTA JAVIER CERCAS

. OSLO QUEBRA O GELO

. O APOLO DIONISÍACO

. O PAI DO SNOOPY

. O CACHIMBO PENSANTE

. ÇA VA?

. TRÊS ALEGRES TIGRES

. O ARCANJO OBSCENO

. RESORT 1 ESTRELA (NO PEIT...

. JACQUES, LE FATALISTE

. HITLER, MEU AMORZINHO

. O ETERNO RETORNO DO ETERN...

. ENTREVISTA: ALI SMITH

. O BARDO DO FARDO E O TROV...

. A MÚSICA DAS ESFERAS IV

. ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA D...

. SEXO E OUTRAS COISAS EMBA...

. ALI E ALÁ

. VIVA LA MUERTE?

. O BELO MALDITO

. REPERCUSSÃO DESTE BLOG!

. DEBAIXO DO VULCÃO

. PUSHKIN, O EMBAIXADOR E E...

. A ÚLTIMA CEIA DO MODERNIS...

. MAILER, VIDAL, CAVETT

. O REI DESTA SELVA VAI NU

. QUEM TEM K SEMPRE ESCAPA

. ENTREVISTA UMBERTO ECO

.arquivos

. Setembro 2011

. Abril 2011

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

.tags

. todas as tags

.links

.subscrever feeds