Domingo, 6 de Junho de 2010

A ÚLTIMA CEIA DO MODERNISMO

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MARILYN MONROE LENDO O "ULISSES", de JOYCE

 

 

 

Há quase 90 anos, foi celebrada a «Última Ceia» do Modernismo europeu. No dia 18 de Maio de 1922, um «dinner party» no sumptuoso hotel Majestic, em Paris, reuniu à mesma mesa um punhado de duques e duquesas do Faubourg Saint-Germain. Mas os convidados de honra eram plebeus, um quinteto de colossos que marcaram para sempre a arte contemporânea: Serge Diaghilev, Igor Stravinsky, Pablo Picasso, Marcel Proust e James Joyce. Por causa deles, o encontro representou muito mais do que uma mera «soireé» género revista «Caras». Correspondeu, na verdade, ao zénite simbólico de um movimento cultural e até de um modelo de civilização, que tinha em Paris tanto a sua Meca como a sua Babilónia.

O pretexto para o regabofe residia na estreia do bailado «Renard», de Stravinsky, dançado pela companhia Ballets Russes, de Diaghilev, cuja sacrossanta missão consistia em «épater les bourgeois». Os anfitriões eram um casal de judeus ingleses ricos e cultivados, Sydney Schiff (escritor bissexto) e sua mulher Violet, uma «socialite» intelectual. Além dos cinco titãs, havia outros convidados VIP. Por exemplo, a princesa de Polignac, uma «dominatrix» lésbica que, segundo as cascavéis mais venenosas, lembrava um chefe comanche. Ou o bailarino Nijinsky, com os seus músculos de aço a palpitar sob as calças justíssimas. Ou o «enviado especial» do Grupo de Bloomsbury, Clive Bell, sobrinho dilecto de Virgínia Woolf. Violet e Sidney esperavam que, com toda aquela massa cinzenta a bordo, o sarau se transfigurasse num «event». Aptidões não lhes escasseavam: segundo T. S. Eliot, o casal «tinha o condão de arregimentar pessoas muito diferentes e fazer com que elas combinassem como pão e manteiga».

Os acontecimentos mostrariam, contudo, que os Schiff estavam a cometer um erro crasso e fatal: sobrestimar as capacidades gregárias dos artistas, sobretudo dos escritores. Ou seja, alimentavam a expectativa de que os seus comensais (principalmente Proust e Joyce) fossem tão cintilantes e carismáticos em carne e osso como no papel, prodigalizando um manancial de «bon mots» e epigramas imperecíveis. Oscar Wilde de facto era assim, mas a maior parte dos criadores prefere aplicar o seu génio nas suas obras, e quando muito deixar o talento para a vida (se sobrar algum). Afinal, como assinalou Beckett na sua monografia sobre Proust, «a arte é a apoteose da solidão».

À primeira vista, porém, 1922 parecia a altura ideal para uma festança olímpica, para o bem ou para o mal. Fora naquele ano ainda pintado de fresco que saíram o «Ulisses», de Joyce, e «The Waste Land», de Eliot. James Frazer lançara o «clássico instantâneo» da antropologia, «The Golden Bough», e Wittgenstein anunciara ter resolvido todos os problemas filosóficos, no seu recém-nascido «Tractus Lógico-Philosophicus». E, apenas mais uns mesinhos adiante, Marcel Proust pingaria o ponto final no ciclópico «À La Recherche du Temps Perdu». Enquanto isso, lá fora, Nils Borh embolsava o Nobel de Física, Howard Carter exumava a tumba de Tutankamon e Mussolini tomava o poder.

O próprio cenário não podia ser mais aconchegante. Mesmo que o Majestic, situado na avenue Kléber, tivesse sido a segunda escolha dos anfitriões: o Ritz acabou descartado porque não permitia que se tocasse música depois da meia-noite – e àqueles semideuses podia apetecer um pezinho de dança. Quanto à ementa, os cozinheiros sonhavam  agradar tanto aos exilados russos – caviar e entradas moscovitas – como aos proustianos e joyceanos militantes: espargos, «bouef en gelée», «pudding», «bearnaise sauce», tarte de amêndoas com café e gelado de pistache.

Diaghilev, na condição de braço direito dos Schiff, ungiu-se em mestre-de-cerimónias: tomou da palavra e saudou os presentes, enquanto a sua abundante cabeleira, empastada de brilhantina, exalava um intenso perfume de flor de amendoeira. Stravinsky perfilava-se na sua silhueta esguia, de nariz protuberante, cabeça oval, ombros caídos e bigode ralo. Picasso (que já em 1906 convulsionara o panorama artístico com «Les Demoiselles d’Avignon», dando o pontapé de saída no Modernismo), sentia-se como um peixe na água em qualquer ambiente – fosse um aquário, fosse o Oceano Pacífico. Acintosamente à vontade, envergava um cachecol catalão juntamente com o smoking. Todos tinham aguardado ansiosamente a chegada de Proust e Joyce, e agora o sentimento era uma mistura de embaraço e consternação. O autor de «Ulisses» entrou na sala privada do Majestic bastante atrasado. Pior: estava visivelmente com os copos – por assim dizer, torrencialmente enfrascado. Proust, por sua vez, só fez a sua aparição às duas da madrugada, abusando do conceito de «dinner-party». Eis como Clive Bell descreveu a cena: «Joyce manteve-se taciturno, com a cabeça apoiada numa mão e uma taça de champanhe à sua frente. Passado um bocado, simplesmente ferrou no sono, e desatou a ressonar alto e bom som. Proust, uma figura minúscula e janota, usava umas luvas pretas e brancas que pareciam de criança. Quanto a Picasso, exuberante e autoritário como sempre, tinha uma melena de cabelo sobre um olho como uma pala de pirata, e emanava uma energia napoleónica».

Proust estava bem distante dos tempos em que era um alpinista social snobe, conhecido como «o Proust do Ritz», quando chegara  a se declarar feliz e honrado por ter apanhado uma constipação de Lord Derby, na medida em que dessa forma germes brasonados haviam invadido o seu organismo… Quem o vira e quem o via! Dantes, não perdia uma badalação, financiava um bordel masculino, dava gorjetas principescas (de 300 francos) e até desafiava desafectos para duelos (disparou duas vezes contra o jornalista Jean Lorrain, falhando ambas por apenas alguns quilómetros).

Agora, o antigo cortesão jazia enclausurado no seu quarto forrado à cortiça, rabiscando e ditando as derradeiras páginas de «À La Recherche» para a sua criada Celeste. Mais: desenvolvera uma verdadeira fobia anti-social. No Reveillon de 1921, já se preparava emocionalmente para enfrentar o jantar no Majestic, e bombardeava os anfitriões com bilhetinhos pungentes: «O pavor de não conseguir comparecer ao vosso jantar obrigou-me a consumir medicamentos em tal quantidade que irão receber uma criatura afásica e de pernas bambas». Houve mesmo um incidente insólito e arrepiante: no intuito de fortalecer o seu ânimo, o escritor ingeriu uma dose cavalar de adrenalina, que por um triz não lhe estropiou a garganta. Resultado: passou um mês sob uma dieta que se restringia a gelado e cerveja bem fria, que mandava buscar ao Ritz. Antes de seguir rumo ao Majestic, pediu pelo menos dez vezes a empregada que telefonasse aos Schiff, para se certificar de que seria acolhido com «uma chávena de chá a ferver», e de que não existiam ignóbeis correntes de ar no recinto. Em 1921, a hipocondria de Proust chegou a tal ponto que a sua correspondência tinha de ser desinfectada a vapor. Ocasionalmente, os cuidados eram justificados: certa vez, no restaurante Le Boeuf sur le Toit, estalou uma zaragata e o escritor escapou por um triz de ser atingido tanto por um balde de gelo como por um frango assado.

Se no âmbito mundano as coisas para Proust tinham mudado, no aspecto literário o panorama também não era propriamente o mesmo. Depois das dificuldades preliminares para editar a sua obra (para sua eterna vergonha, Gide recusou o manuscrito em nome da NRF), quando o primeiro tomo de «À La Recherche» foi finalmente publicado pela Grasset a genialidade do autor foi ofuscante – o livro ganhou o prémio Goncourt do respectivo ano e Gide escreveu uma carta a Proust com um pedido de desculpas («será para sempre o maior remorso da minha vida»). Todavia, pouco antes do jantar no Majestic saíra o quarto volume, «Sodoma e Gomorra», e franqueza do conteúdo homoerótico estarreceu quase toda a gente. A crítica em geral saudou o romance com um silêncio glacial – mas alguns aproveitaram para desopilar o fígado. O próprio Paul Valéry fez uma careta: «A vida é demasiado curta. Proust é demasiado longo». Louis-Ferdinand Céline esgrimiu a sua proverbial truculência: «Proust explica demasiado para o meu gosto: trezentas páginas para nos explicar que Tutur enraba Tatave, é um pouco de mais». Um pouco mais tarde, até Vladimir Nabokov espetará a sua farpa: «As cenas de amor entre Albertine e o narrador só fazem sentido se o leitor souber que o Narrador é maricas, e que as nádegas de Albertine são na verdade as nádegas de um certo Albert».

Na sua monografia sobre o jantar dos Schiff («A Night At the Majestic»), Richard Davenport-Hines observa agudamente que, naqueles dias, Proust era «um homem a tentar manter a sua alma viva». O cativante livro de Davenport-Hines, ao mesmo tempo conceptual e mexeriqueiro, fornece uma esplêndida definição de «A La Recherche», descrevendo-a como uma obra teológica para um mundo secular, «um romance sobre a eternidade escrito por alguém que não acreditava nem no Céu nem no Inferno».

Patinando em tal contexto, não admira que mesmo uma criatura tão arguta e polida como Proust fosse, naquelas circunstâncias, uma bomba de relógio de gaffes atrás de gaffes. Poucos instantes depois da chegada do escritor, a princesa Violette Murat abandonou a sala majestosamente, esfaqueando Proust com o olhar. O ficcionista nem precisou de abrir a boca: a princesa estava mortalmente ofendida com os boatos de que uma das personagens mais sovinas de «A La Recherche» tinha sido inspirada nela. A seguir foi a vez de Stravinsky, o qual se encontrava sentado, hirto como uma tábua de engomar, numa espera angustiada pelas primeiras críticas ao seu noivo bailado. Pois bem: Proust acercou-se dele e, em vez de o encorajar, desatou a enaltecer os quartetos de Beethoven. Stravinsky limitou-se a espumar: «Detesto Beethoven!» – e virou a cara para o outro lado.

Restava James Joyce, que depois da soneca se recompusera da bebedeira, mas continuava a sentir-se inquieto por causa do seu traje, que considerava inadequado e pindérico. O homérico «Ulisses» acabara de ser publicado, e o autor descobrira que santo de casa não faz milagres, ao ouvir a sua mulher gemer perante aquela prosa abstrusa: «Por que é que tu não escreves livros que as pessoas possam ler?»

A primeira e única conversa entre os dois maiores escritores do século XX é um dos mitos mais acalentados da história literária, quase tão dissecada como o sorriso da Monalisa. Joyce, na frase memorável da Sylvia Beach, «tratava toda a gente igual, fossem crianças, princesas, escritores ou mulheres-a-dias (faxineiras)». Mas o facto é que a inevitável rivalidade entre ambos se mostrava latente, com as respectivas facções proclamando a supremacia de um ou do outro e deitando lenha à fogueira. O diálogo arrancou não exactamente da forma mais profunda: «Gosta de trufas?», perguntou Proust. Joyce encolheu os ombros e respondeu: «Sim, gosto». O pingue-pongue não melhorou lá muito, com uma procissão de anti-clímaxes. «Nunca li o ‘Ulisses’», confessou Proust, compungido. «Não se preocupe», resmungou Joyce. «Eu tão-pouco li os seus livros». A seguir, o francês queixou-se amargamente do seu estômago, e o irlandês dos seus olhos. Anos mais tarde, Joyce evocou o encontro: «Não tínhamos muito em comum. Eu só queria falar de criadas, e ele só queria falar de duquesas. Perguntou-me se eu conhecia uma certa duquesa Fulana de Tal, e respondi que nunca a tinha visto mais gorda».

Mas o convívio ainda prometia piorar bastante. Quando o jantar por fim acabou, um Proust quase exangue apanhou um táxi para regressar ao seu santuário de cortiça. Ao indicar a direcção ao motorista, Joyce invadiu o carro intempestivamente e instalou-se ao lado do escritor francês. Como se não bastasse, abriu a janela do automóvel e acendeu um cigarro. O asmático Proust, pálido como um lírio, lamentou não ter trazido uma pistola para aperfeiçoar a pontaria. Quando o táxi parou diante da sua casa, Proust disse ao taxista que partisse o mais depressa possível, sem convidar Joyce a entrar, como mandava a etiqueta.

Apenas seis meses depois da folia patrocinada pelos Schiff, Marcel Proust morreu. E, como tantas vezes acontece, nada como um último suspiro para que as pessoas reconsiderem as suas opiniões a respeito de um nosso semelhante. Nas exéquias do autor de «La Recherche» – tão concorridas como as de Victor Hugo – toda a França parou. Joyce, Diaghilev, Maikovski e Cocteau, entre muitos outros, foram ao funeral. Pouco antes de expirar, Proust tinha ditado à criada Celeste as derradeiras correcções nas provas da sua obra-prima – uma passagem sobre a morte do escritor Bergotte. Agora, ninguém diria de Proust o que Oscar Wilde dissera no enterro de um compatriota: «Bernard Shaw não tem um inimigo no mundo. Em compensação, nenhum dos seus amigos gosta dele». É que Proust não tinha perdido o seu tempo – o moderno agora era, finalmente, eterno.

 

(Texto publicado no caderno Actual, do semanário Expresso)

publicado por otransatlantico às 12:54
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