Quarta-feira, 29 de Setembro de 2010

MACACO É A SUA AVÓ!

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E a minha também, naturalmente. Culpa de Charles Darwin, cujo bicentenário comemorou-se recentemente, assim como os 150 anos de A Origem das Espécies. Para se avaliar o impacto do aniversariante, basta pensar que, na altura, ainda prevaleciam os cálculos do prelado irlandês James Ussher. Este, depois de uma vida inteira de estudos exaustivos, anunciou triunfalmente que a Criação do Mundo ocorrera em 26 de Outubro de 4004 a.C., às 9 da manhã em ponto.

Bem, digamos que errou por, hum, imenso. Hoje os astrofísicos estimam que o Big Bang foi há 13,7 biliões de anos, e que a vida na Terra despontou há 4 biliões de anos. Antes de Darwin, o consenso era de que, obviamente, os dinossauros se tinham extinguido porque não cabiam na arca de Noé. Claro: a reacção foi o fim da macacada. O bispo de Oxford perguntou-lhe: “Mr. Darwin, o senhor pretende descender do macaco por parte de pai ou de mãe?” Darwin adiou anos a fio a edição da sua obra-prima, onde propõe que as espécies são seleccionadas através de variações favoráveis devidas ao acaso. De excelente carácter, e embora acabasse a vida como um afável agnóstico, Charles sofria com o desgosto que causava à mulher, Ema. Esta, uma cristã fervorosa, achava que, por causa das teorias do marido, ambos passariam a Eternidade separados: ela no Céu, com querubins, auréolas e harpas, ele no Inferno, a assar em lume brando com um tridente espetado no rabo.

Ainda hoje, nos EUA (que detêm metades dos cientistas nobelizados), só 1 em cada 2 americanos acredita que o Homem possa resultar de milhões de anos de evolução. Na terra natal de Darwin, 1 em cada 4 ingleses pensa que ele era chanfrado ou charlatão. É sugestivo o facto de que este suposto iconoclasta mefistofélico esteja agora sepultado na Abadia de Westminster.

O que ele diria da actual pancadaria entre os Criacionistas (e os fãs do “design inteligente”, que pregam uma espécie de “teologia natural”) e racionalistas passionais como Richard Dawkins? Darwin possuía uma paixão sincera e silenciosa, mas isenta de preconceitos e imune a qualquer género de reducionismo – seja místico seja materialista. Ao refutar irreversivelmente a cronologia bíblica, nunca excluiu, ao menos teoricamente, a hipótese de que a selecção natural pudesse ser uma lei de Deus – isso eram contas de outro rosário, que não lhe diziam respeito. Daí que - aposto o meu pescoço de cisne! -, perante tanta crispação e histeria sectária em redor da suas descobertas, ele provavelmente mandaria os dois lados da barricada irem pentear macacos.

publicado por otransatlantico às 13:11
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Quinta-feira, 23 de Setembro de 2010

A MENSAGEM NUMA GARRAFA

 

Observo a perene  baixaria de Amy Winehouse (nome é destino?) ou Lindsay Lohan e rumino que, no mundo da música e da representação, tudo continua na mesma como a lesma - não faltam nem faltarão ovelhas negras, autodestrutivos compulsivos, dionisiacos feéricos (dependendo do ponto de vista). Já o mundo das letras há muito que anda mais recatado, sobretudo no que diz respeito a molhar a goela. Quem nos viu e quem nos vê.

No dia 2 de Fevereiro de 1821, o bebedor de gim Lord Byron anotou no seu Diário de Ravenna: "Estive pensando sobre o motivo por que acordo sempre a uma determinada hora da manhã, e muito mal disposto. Na Inglaterra, há cinco anos, sofria do mesmo incomodo, só que acompanhado de uma sede tal que cheguei a beber 15 copos de água numa única noite, depois de ir para a cama, sem me sentir saciado. Será o fígado?"

No diário do crítico e ficcionista Edmund Wilson, 130 anos depois, há esta entrada: "Certa noite bebi uma garrafa inteira de champanhe e o resto de uma garrafa de whisky e abri uma outra de vinho tinto - tudo começou pelas cinco da tarde. Adormeci na minha cadeira e quando acordei pensei que já era o dia seguinte. Não jantei e me senti enjoado durante 24 horas." Como assinala Gore Vidal, Wilson não se pergunta se "será o fígado". Ele sabe-o. Tanto que conclui: "Esse tipo de vida, a longo prazo, vai ficando pouco saudável." Pois.

O próprio Vidal fala de um carta que recebeu do então notório escritor Upton Sinclair, confessando-se copofónico e comentando que todos os colegas de ofício que conhecera pessoalmente, entre eles o seu amigo do peito Jack London, tinham - por assim dizer - morrido afogados (mas não em água, seja doce ou salgada). Wilson ainda - com o perdão do trocadilho - se aguentou nas canetas valorosamente, tendo em conta o combustível que ingeria. Já septuagenário, entrava no Princeton Clube com passo vacilante e pedia seis martinis simultâneos (enfileirados na mesa), que ia emborcando enquanto conversava. Ora, quando morreu, aos 77 anos, andava a aprender Húngaro (depois de ter aprendido Russo - para traduzir Pushkin - e Hebraico - para analisar os Pergaminhos do Mar Morto).

Mas foi uma longeva exceção. A maioria dos prosadores alcoólicos arruinou a sua vida ou a sua obra ou ambas. Para ficar só em território americano, a lista é espantosa: Scott Fitzgerald, Hemingway, Faulkner, Eugene O'Neill, Dorothy Parker, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, John Steinbeck, John O'Hara, James Thurber, Truman Capote, Tenesse Williams, William Inge, Elizabeth Bishop, Wallace Stevens, Robert Benchley, Ring Lardner, Thomas Wolfe, Jack Kerouac, Malcolm Lowry, Robert Lowell, James Agee, John Cheever, Ambrose Bierce, Theodore Dreiser, Hart Crane, Edna St. Vincent Millay, Stephen Crane, Jack London e Edgar Allan Poe. Ufa, cansei. E citei apenas aqueles cujo pedigree literário está acima de qualquer suspeita, já referendados por uma dose (ups!) suficiente de posteridade.

Dos sete americanos que embolsaram o Nobel de Literatura, cinco eram alcoólatras: Sinclair Lewis, Eugene O'Neill, Hemingway, Faulkner e Steinbeck. Saul Bellow era judeu e, historicamente, os judeus são parcimoniosos com a bebida (não, não é piada antisemita). Resta Pearl S. Buck - mas, como argumentou alguém, quando ela ganhou o Nobel, o júri sueco é que devia estar bêbedo.

Porquê os autores bebiam tanto? Um acadêmico escreveu uma tese sobre o assunto, intitulada The Alcoholic Republic. Enuncia vários rótulos (psicose maníaco-depressiva, personalidades fragmentadas, esquizofrenia, etc) e desata a colá-los nos escritores. Ora, se Poe, Fitzgerald e Lowry eram esponjas porque sentiam-se fracassados, então Faulkner, Hemingway e Steinbeck deviam enfrascar-se porque eram coqueluches...

Fitzgerald fez uma autocrítica divertida: "Não consigo permanecer sóbrio o tempo suficiente para achar graça em estar sóbrio." Já Faulkner dizia que a única coisa que o chateava no álcool eram os longos ataques de soluço, tão retumbantes que deviam ouvir-se até no imaginário condado de Yaknopatawpha, onde se desenrolam as suas criações. Mas vivia a vomitar sangue, a sofrer estupores (numa festa dada em Paris em sua honra pela editora Gallimard, ele balbuciava qualquer grunhido e recuava um passo, até acabar no jardim, sozinho, onde fazia um frio de rachar), a cair de escadas e de cavalos - uma das quedas provocou-lhe uma trombose fatal. Hemingway, que tinha alucinações, acabou com o fígado visível à distância, protuberante sob a gordura da barriga.

E olhem que Hemingway possuía uma resistência gargantuesca. Bateu o seu próprio record numa noite em Cuba, no bar Floridita, onde foi inventado o daiquiri duplo gelado - double frozen daiquiri, também conhecido como "Hemingway" ou "papa double". Consiste de duas doses e meia de rum Bacardi selo branco, sumo de dois limões e meio, grapefruit e seis gotas de marasquino. Tudo é despejado num liquidificador e batido furiosamente. Naquela noite, Hemingway emborcou 16 papa double - ou seja, 32 doses. Se as testemunhas não mentiram, consta que foi para casa na vertical, usando os próprios pés.

Não foram só americanos, claro. George Simenon bebeu quase tanto como escreveu - o que é torrencial. Consumia, anos a fio, três ou quatro garrafas de vinho por dia ("como se fosse água", conforme explicou), além de um aperitivo antes de cada refeição e de um conhaque para começar a escrever.

E a família de Fernando Pessoa ficou fula com João Gaspar Simões, por o biógrafo ter abordado francamente o alcoolismo do poeta. Como revela outro biógrafo, por vezes a premência de Pessoa era tão aguda que ele saía a galope do escritório, para ir a uma tasca que ficava mesmo ao lado. Robert Brechon destaca que, para o poeta dos heterónimos, a bebida não era um prazer. "Álvaro de Campos não quer saber da qualidade nem mesmo da natureza do que bebe. Fala de 'um vinho de bêbedo quando nem a náusea obsta." Morreu aos 47 anos, de uma crise hepática.

Não formulo julgamentos. Hoje o alcoolismo (como a toxicodependência) é considerado uma doença, cuja causa é ainda imprecisa - se o ambiente, a hereditariedade ou ambas. Com penas aguçadas brandidas, desculpas epigramáticas nunca faltaram. George Jean Nathan, o maior crítico teatral da história dos EUA, sibilou: "Bebo para tornar as outras pessoas interessantes." E Robert Benchley saiu-se com esta: "Dizem que a bebida mata lentamente. Ora, e quem é que está com pressa?"

O grande equívoco - sem caretice - é esquecer que, sem tanto álcool, os escritores teriam escrito mais - e eventualmente melhor. Se teriam sido mais felizes? Bem, isso é uma outra história, e cada uma tem um final.

publicado por otransatlantico às 12:30
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Domingo, 19 de Setembro de 2010

ALTA COSTURA E ALTA CULTURA

 

 

 

DIOR A MEDIR CAUTELOSAMENTE UMA PERNOCA FEMININA

 

 

 

 

Não confundo alta-costura com alta cultura: um trapinho sublime não equivale a um romance genial. Mas a produção de roupas é uma arte, e a mais antiga. E também a mais efémera, como demonstra simbolicamente a sua primeira expressão, a “body painting”, anterior às pinturas rupestres. Ora, uma mulher bem vestida é quase tão irresistível como uma bem despida (claro que há quem fique bonita com tudo – e principalmente sem nada). Porém, existe uma coisa chamada gosto: violeta será uma boa cor para os cabelos no dia em que morena for uma boa cor para uma flor. Para não falar na utilidade: os saltos altos foram inventados por uma espertalhona que até então só tinha sido beijada na testa.

2007 foi um ano que esteve na última moda - até porque depois a crise deu o ar da sua graça e continua na crista da onda. Tivémos os 50 anos da morte de Dior, Valentino pendurou a tesoura e Calvin Klein celebrou 25 anos de cuecas.

Dior revolucionou a moda em 1947 – e foi a estrela da exposição “The Golden Age of Couture”, no Victoria & Albert Museum, em Londres (que se prolongou até Janeiro de 2008). Logo na primeira coleção, introduziu aquilo a que a editora da “Harper’s Bazaar, Carmel Snow, ungiu como o “new look”. Com as saias em forma de sino e as cinturas de vespa, exumou o glamour e feminilidade, depois da neura macilenta e patibular da II Guerra Mundial.

Dior, como a maior parte dos estilistas, era bicha até à raiz dos cabelos. Quando um rapaz resistiu aos seus avanços, alegando ser hetero, o costureiro ficou parvo: “Mas para quê raio precisas de uma mulher, se já nasceste?”

Já Valentino foi aquele que tornou as mulheres ainda mais tentadoras aos olhos masculinos. OK, existem feias potáveis. E é verdade que há numerosas beldades em que a coisa mais profunda é o sono. Mas a beleza é comovente, até por ser tão perecível. Como os boxers que Calvin Klein criou, com o seu logótipo em letras garrafais no elástico da cintura. Pausa para verificar se estou a usar boxers CK (não, por acaso não). Resultado: actualmente, só Alberto João Jardim aconchega os países-baixos em cuecas tipo slips. Certo, o marketing ajudou imenso. O primeiro modelo da primeira campanha CK foi o atleta olímpico Tom Hintnaus, fotografado pelo lendário Bruce Weber. A 30 euros o kit de 3 peças, a função da roupa interior CK não é apregoar luxo, e sim estilo. Assim como ele reciclou aquele epigrama gay de Dior: “Para o meu grande constrangimento, vim ao mundo na cama com uma mulher”.

 

Já Gabrielle "Coco" Chanel (que ainda por cima era mais bela do que as top models de outrora e de agora) personificou dois temas vitais da história do século XX: a capacidade de as artes aplicadas influenciarem a alta cultura, e a fraqueza da criatividade sob pressão moral. Entre muitas outras coisas, Chanel inventou o prêt-à-porter (pronto a vestir) - antes dela, a alta moda era um privilégio exclusivo dos muito privilegiados. Com a fortuna que embolsou, patrocinou a melhor vanguarda, assinando cheques em branco para Diaghlev e Stravinsky, entre tantos.
Mas no melhor pano cai a nódoa: durante a Ocupação de Paris pelas tropas de Hitler, aceitou a "proteção" de um oficial nazi (por quem, ao que parece, estava realmente enamorada). Quando os Aliados retomaram a cidade, ela escapou por uma unha negra: fugiu para a Suíça. Por muito menos, a grande actriz Arletty permaneceu na prateleira durante dois anos, e não podia por os pés fora de casa. Se fosse apanhada pelos comités da l'Épuration, estes certamente fariam mais que cortar-lhe na casaca. Com toda a certeza, Chanel inauguraria um novo estilo de penteado chique: a cabeça rapada (castigo aplicado a centenas, se não milhares, de francesas que dormiram com os invasores).
Por fim, as autoridades concederam-lhe autorização para regressar à base. O Governo francês tinha percebido que o talento dela era um tesouro nacional.
A destroçada economia de França não podia dispensar a alta costura, muito menos quando o Citroen DS19 ainda estava a ser desenhado. (Sem a alta cultura podia: entre os escritores, Robert Brasilach foi fuzilado, Drieu de la Rochelle matou-se e Céline só voltou muito mais tarde.) Por falar em escritores, Coco Chanel tinha sempre um poeta á mão de semear, para lhe cunhar aforismos de que ela em seguida se apropriava. Como este, que "perfilhou" de Pierre Reverdy: "O luxo é uma necessidade quando a necessidade acaba."  Voilà.

publicado por otransatlantico às 12:07
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Segunda-feira, 13 de Setembro de 2010

AGENTE FINO É OUTRA COISA

 

 

Como eu previa, não aqueceu nem arrefeceu (ou, em brasileiro mais cru, não fedeu nem cheirou) A Essência do Mal, o “novo” livro com James Bond, lançado no ano passado. O pai (adoptivo) da criança é Sebastian Faulks, autor de romances históricos “sérios” – o que é irónico, pois as aventuras de 007 sempre foram uma fantasia delirante. Bond nada tem a ver com os contorcionismos éticos, ideológicos e metafísicos dos espiões de Graham Greene, John Le Carré  ou Alan Furst (para não mencionar O Agente Secreto, de Conrad).

Há um enclave tipicamente britânico – e culturalista – naquela estirpe, e não só ficcionalmente: os casos de Burgess, Philby, Maclean e Anthony Blunt (este último um dos maiores críticos de arte ingleses, feito cavaleiro do reino pela Rainha), todos na vida real “toupeiras” soviéticas, falam por si. A lealdade era devida mais ao par, ao “igual”, do que à nação. Como disse o escritor E. M. Foster, que não foi espião nem escreveu romances do género, mas comungava daquele credo: “Se tiver de escolher entre trair o meu país e trair o meu amigo, espero ter a coragem de trair o meu país.”

Fleming era farinha de outro saco. O negócio dele era o evasionismo balsâmico, louvado seja Deus. Nada de dilacerações filosóficas. A escolha de Faulks partiu dos herdeiros de Ian Fleming, o papá biológico do agente com licença para matar.

Jornalista da Reuters e oficial da Inteligência Naval britânica, Fleming nunca foi um espião no terreno, mas ajudou a criar a CIA. Em 1952, decidiu escrever “um thriller para acabar com todos os thrillers”. O nome do herói brotou de uma obra então famosa (ah, a fugacidade das coisas!), O Guia Definitivo dos Pássaros das Índias Ocidentais, de autoria de um agora obscuro, ou eclipsado, James Bond. Já o termo 007 deriva de um conto de Rudyard Kipling.

A fórmula? Vilões mefistofélicos, carros vertiginosos e fálicos, paisagens exóticas e boazonas mazinhas – tudo no pano de fundo, hoje gagá, da Guerra Fria a ferver. Parece trivial, mas contém a alquimia dos mitos.

No cinema, 007 teve vários cabides, mas o seu habitat natural foi um ex-camionista escocês - Sean Connery (acaba de fazer 80 anos) -, que calcificou a alma do agente: taciturno, brutal, sardónico e frio. E mulherengo 25 horas por dia – mas nunca misógino! Como todo o mito, a série gerou uma iconografia: a receita de Martini, o Aston Martin (e epígonos), as Bond Girls (de Ursula Andress – a sair do mar em Doutor No como a Vénus de Boticelli – a Kim Basinger). Um dos charmes da coisa está no erotismo requintado e oblíquo (em vez de boçal).

Em Moonraker, uma nave espacial se prepara para reeingressar na atmosfera da Terra. Quando a imagem via satélite aparece numa tela gigante ao Ministro britânico da Defesa, 007 está a bordo a ofegar e arquejar por cima da Bond-Girl, ambos nus. O ministro resmunga: “Cruzes, que raio ele está a fazer?” O chefe de Bond, “M”, suspira: “Creio que está a tentar reentrar, Sir”. Fleming escreveu as obras na sua casa na Jamaica, denonimada “Goldeneye”. Não me admirava que algumas frases fossem surripiadas ao vizinho, o epigramático Noel Coward.

Os dois eram amigos e assistiram juntos em Londres ao desfile de estadistas na coroação de Isabel II. De súbito, passou majestosamente a carruagem com a rainha do Togo, que diziam ser canibal. Ao lado da monarca, ia um pigmeu rechonchudo. Fleming intrigou-se: “Quem será aquele?” Coward não teve dúvidas: “Ah, deve ser o lanchinho dela!”

Fleming morreu em 1964, de ataque cardíaco, com apenas 54 anos. Acabara de alinhavar Só Se Vive Duas Vezes. Um título equivocado. Pois ele descobrira, se não a eternidade, algo que anda lá perto. Aposto que, quando chegou à porta do Céu, São Pedro pediu-lhe a senha. Canja: “Bond, James Bond”. A casa é sua.

publicado por otransatlantico às 10:52
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Terça-feira, 7 de Setembro de 2010

TREVAS AO MEIO-DIA

Arthur Koestler y Cynthia

 

 

Não é estranho que o autor de um dos melhores livros (Sleepwalkers, Os Sonâmbulos) de divulgação científica de todos os tempos acreditasse (ou pelo menos admitisse) também em parapsicologia e quejandos? Nem por isso. Afinal, Arthur Koestler, nascido em Budapeste em 1905, acreditou piamente, durante muitos anos, que o Comunismo seria o paraíso na Terra - e não os vários modelos de  Inferno que demonstrou ser. E já Sir Isaac Newton tinha dedicado mais tempo de vida à procura da pedra filosofal e da transmutação de chumbo em ouro segundo a alquimia do que à gravitação universal ou à rarefacção da luz. O escritor Conan Doyle, criador do ultrarracional Sherlock Holmes, acreditava em espíritos, reencarnações e ectoplasmas

Koestler pelo menos  redimiu-se e deixou a melhor obra de ficção contra o totalitarismo, Darkness at Noon (Trevas ao Meio-Dia), inopinadamente traduzido para o francês e o português como O Zero e o Infinito. Sim, melhor que 1984 e Animal Farm (de Orwell) ou O Admirável Mundo Novo (de Aldous Huxley) ou Nós, de Y.I. Zamiatin.

George Steiner, que foi amigo de Koestler, conta que um dia ambos estavam a dar um passeio pelo campo e Koestler desatou a abordar "coincidências estranhas". Não era estranho que o secretário de Lincoln, chamado Kennedy, tivesse implorado ao presidente  que não fosse ao teatro (onde seria assassinado), como, mais tarde, o secretário de Kennedy, chamado Lincoln, tivesse suplicado ao presidente que não fosse a Dallas? O assassino Booth não matou Lincoln num teatro, refugiando-se em seguida num armazém, e Lee Harvey Oswald não abateu Kennedy a partir de um armazém, escondendo-se depois num teatro? E não era verdade que os sucessores de ambos os presidentes chamavam-se Johnson?

Confidencialmente, é estranho. Se eu já não fosse demasiado calejado para conversões, convertia-me a.... bem, sei lá a quê.

Koestler comeu o pão que o diabo amassou: conheceu o exílio, a prisão, a vilificação, o isolamento e a pobreza. Exilado em Paris, assistiu a ocupação da França por Hitler. Nunca foi convidado para uma casa francesa. Escreveu que "um francês seria capaz de abraçá-lo e depois deixá-lo tremendo de frio, na rua." A opinião dele não melhorou quando foi preso pela polícia colaboracionista e recolhido a um campo de concentração.

Muitos anos depois, já tendo adotado a nacionalidade britânica, fez um pacto de suicídio com a sua mulher Cynthia. Quando foi acometido por uma doença incurável que o teria submetido a um suplício servil e inútil, ambos mataram-se na sua recatada casa londrina, no bairro de Knightsbridge, após duas belas chávenas de chá envenenado.

Aliás, Koestler era vice-presidente da "Exit" (Saída), uma sociedade cujo postulado é que saiamos desta vida a tempo, com dignidade, antes de perder as faculdades, sem passar pelo ignóbil trâmite da decadência intelectual e física. O gesto pode ser discutido, mas é difícil não lhe reconhecer a elegância.

A nota de suicídio continha a seguinte passagem: "Desejo que os meus amigos saibam que deixo a sua companhia num estado de espírito sereno, acompanhado por algumas esperanças tímidas numa sobrevivência posterior para lá dos confins do espaço, do tempo e da matéria, e para além dos limites que podemos compreender. Este 'sentimento oceânico' serviu-me muitas vezes de apoio em momentos difíceis e apoio-me nele uma vez mais, enquanto escrevo estas palavras".

Nada a acrescentar.

publicado por otransatlantico às 19:08
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Sábado, 4 de Setembro de 2010

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS

 

 

Em 1933, quando o casal Gertrude Stein e Alice B. Tocklas almoçava na Casa Branca com Eleanor Roosevelt (então Primeira Dama e ela própria não invicta em experiências homoeróticas), a anfitriã comentou: "Não acham que existe algo próximo da nobreza nos camponeses e operários, lutando para manter seus lares e famílias?" Gertrude pigarreou: "Talvez. Mas prefiro observá-los a uma distância decente."

Gertrude Stein viveu em Paris a maior parte da vida, foi uma espécie de madrinha dos literatos americanos expatriados e cunhou o termo "geração maldita". Ela própria escrevia, incluindo o dubiamente famoso verso "uma rosa é uma rosa é uma rosa" (Rose is a rose is a rose is a rose is a rose.). Talvez a única coisa legível dela hoje seja A Autobiografia de Alice B. Toklas - sim, escrito na primeira pessoa, não pela amante de sempre mas pela própria Gertrude Stein. O que não impede o livro de conter afirmações como esta: "Na minha vida conheci três gênios: Pablo Picasso, Alfred Whitehead e Gertrude Stein."

Bem, o amor é cego. Tão cego que uma vez Alice foi ouvida a suspirar embevecidamente, contemplando a amada: "Ah, a Gertrude, quando se arruma, fica igualzinha a um general da Guerra da Secessão..."

O quadro lá em cima é um retrato de Gertrude Stein pintado por Picasso. Favorece-a muito.


publicado por otransatlantico às 12:29
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