Segunda-feira, 28 de Junho de 2010

ENTREVISTA: ALI SMITH

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Aos 44 anos, a escocesa Ali Smith é a nova sensação da literatura anglo-saxónica. Depois de dois volumes de contos com títulos provocantes («Other Stories and Other Stories» e «The Whole Story and Other Stories») e um primeiro romance admirável («Hotel  World», também editado em Portugal pela Bico de Pena), «A Acidental» foi saudado como uma obra-prima. O livro açambarcou prémios importantes dos dois lados do Atlântico (como os renhidos e prestigiados Whitbread e Orange), e não ganhou o Booker Prize por um triz .

 

- PAULO NOGUEIRA: Considera que, apesar das idiossincrasias de cada escritor, existe uma ficção escocesa demarcada da inglesa? Por exemplo, Alasdair Gray, Neil Munro, Irvine Walsh e Ali Smith – prosadores tão diferentes entre si – têm algo em comum?

 

ALI SMITH: Sem dúvida. Sou afortunada, enquanto escritora, por beneficiar de uma literatura cheia de vitalidade, e de desfrutá-la ao longo de toda a minha vida, através do século em que nasci. Trata-se de uma literatura que sabe que as vozes muitas vezes provêm das orlas, de qualquer nicho, e podem assumir qualquer forma. E não há nada de mais importante para um escritor, do que saber disso. É também uma literatura produzida pela realidade – pelas circunstâncias da história – e portanto pode ser (na verdade, é) plurívoca.

 

- PN: Foi difícil a transição do conto para o romance? Trata-se, afinal, apenas de uma questão de escala? Por que os editores de hoje não gostam de livros de contos? O tamanho importa?

 

A.S.: (Risos) É somente uma outra forma, com as suas próprias dificuldades. Romances são difíceis porque são longos, contos são difíceis porque são curtos. Mas ambos dependem para funcionar de uma estrutura muito precisa, cuja essência é a própria linguagem. Contos são muito flexíveis, conseguem narrar o que bem entendem, ao passo que na dimensão do romance isso parece menos viável. Mas não é pecado transpor fronteiras, combinar géneros, permitir que os romances adotem formas elásticas, como os melhores contos. É um disparate os editores julgarem que os leitores não apreciam contos, só porque não descobriram como vendê-los. Isso é uma gestão mentirosa.

 

PN: Em A Acidental, há uma conjugação de fantasia e realismo, embora diferente do realismo fantástico. A protagonista pode ou não ser real, mas os interlocutores dela são tridimensionais até à raiz dos cabelos…

 

A.S: A intenção foi essa… Em muitos sentidos, é um romance sobre como as pessoas reduzem os outros a bidimensionalidade. Portanto, são surpreendidas quando aqueles se revelam tridimensionais, contra todas as expectativas.

 

PN: A personagem Michael ensina literatura, e Eve escreve ficção… Como disse T.S. Eliot, cada vez mais livros são sobre livros?

 

A.S.: Livros geram livros. São os livros, não os escritores, que produzem os livros mais apaixonantes. A Acidental realmente se interroga sobre aquilo que um livro faz, o que as histórias fazem, e como repercutem no mundo real. Todos os meus livros se debruçam sobre esta questão.

 

PN: A sua obra reflete uma preocupação intensa com as vozes narrativas. Em A Acidental manipula múltiplos pontos de vistas e correntes de consciência. É uma escritora muito disciplinada na planificação do romance? Reescreve muito, até considerar o livro concluído?

 

A.S.: Uma voz engendra a si própria através das coisas que diz, e a minha responsabilidade – como ouvinte – é atentar para o que ela articula. Tal operação envolve, digamos, 50 por cento de intuição e 50 por cento de carpintaria. O que, aliás, corresponde ao processo incessante de verificar o que esta voz pretende e aonde deseja ir, ao mesmo tempo em que exprimimos a sua forma literária. Não há nada senão vozes numa história. Não há histórias sem vozes. E, claro, não há vozes sem história.

 

 

PN: Em A Acidental reina uma ambiguidade intrigante. A protagonista parece má, mas afinal faz o bem, operando uma espécie de catarse …

 

A.S:: É verdade. Creio que se trata de um livro otimista – para a minha própria perplexidade. De certa forma, o que ele diz é o seguinte: repara que outras coisas, diferentes interpretações, novas estradas podem ser não apenas possíveis mas proveitosas.

 

PN: Durante algum tempo, deu aulas de escrita criativa. O que pensa desta frase: «Escrever não se ensina, apenas se aprende»?

 

A.S: A estrutura da escrita (no sentido de «editing») pode ser ensinada. A confiança pode ser transmitida a um autor. A disciplina pode ser aconselhada. Sugestões podem ser dadas. Eu não remodelaria um livro, mas apresentaria os meus conselhos.

 

PN: Os prémios são úteis para um escritor? Ou ele é um monge, para quem fama e dinheiro não interessam?

 

A.S: Os prémios dão mais segurança ao autor, no mundo selvagem da edição. E ajudam a divulgar uma obra. Por exemplo, a lista de finalistas do último Orange conferiu notoriedade a um romance excelente – Everyman Rules for Scientific Living, da sul-africana Carrie Tiffany -, que de outra forma talvez tivesse passado em brancas nuvens. Mas os livros não são os prémios – e estes podem até resultar em uma distração do verdadeiro trabalho da escrita, situado entre a intimidade e a transgressão. Não me importava nada de ser um monge, na medida em que não conseguimos escrever com uma banda a tocar à nossa porta. Por falar nisso, estou prestes a abraçar outra vez a reclusão. Conhece alguma caverna secreta em Portugal em que eu possa viver? Ou algum convento que me aceite?

 

(Entrevista publicada no semanário "Expresso")

publicado por otransatlantico às 17:21
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Domingo, 27 de Junho de 2010

O BARDO DO FARDO E O TROVADOR DA DOR

 

 

 

 

 

 

Quarta-feira imperiosa: Leonard Cohen canta em Lisboa. Há um entrevista dele fresquinha no YouTube (1º vídeo): um ancião alquebrado, mas sábio e estóico. Surpresas para o concerto? “Burro velho não aprende línguas”, diz o cético ditado luso. Cohen dedicou-se à música trintão, já consagrado como autor de excelentes romances e poesia (entrou na memorável antologia “Rosa do Mundo”, da editora Assírio, que começa com Homero). Como poeta, lembra Lorca (2º vídeo). Na minha modesta opinião de sumidade no assunto, o maior lírico pop, incluindo Dylan. Um típico literato judeu de Montreal, como Saul Bellow.

Mas não vendia o suficiente (onde é que já vi isso antes?) e socorreu-se nas canções. Recorda o percurso de Vinicius de Moraes, do Parnaso para a cultura de massas. Um emblema de Cohen é o lirismo amargo e pungente, por vezes depressivo, mas nunca piegas. Outro é o universalismo – talvez por ter vivido na ilha de Hydra, na Grécia, com a sua então mulher Marianne (sim, da obra-prima “Marianne”). E o terceiro, as mulheres propriamente ditas.

No YouTube: “Não é possível prever o amor, pois o coração está sempre a abrir e a fechar-se. Depois de um certo período de tempo, os fracassos serão significativos. A arena do amor é perigosa, mas ninguém vive sem ele. Podemos nos abster por covardia, julgando que será sempre um inferno – mas também nesse caso podemos estar redondamente enganados”.

Os jovens com miolos e alma reverenciam-no – magistral a versão de Madeleine Peyroux de “Dance me To the End of Love”  (3º vídeo).

 


 

 

 

 

 

Em 1991, os R.E.M., Echo & the Bunnymen e Nick Cave, entre outros, gravaram o tributo “I’m Your Fan”.

 

 

 

 

 

 

 

Aos 75 anos, Cohen cita Tenesse Williams: “A vida é uma peça até que bem encenada, exceto pelo terceiro acto”. Sim, morremos no fim. Mas, como ele realça, “o problema não é tanto a morte, mas as suas preliminares”. Mais explicitamente ainda, no seu humor sarcástico: “Agora dói-me tanto nos lugares onde outrora costumava ter tanto prazer…”

 

(CRONICA PUBLICADA NA Revista de Domingo, do Correio da Manhã)

publicado por otransatlantico às 11:42
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Sexta-feira, 25 de Junho de 2010

A MÚSICA DAS ESFERAS IV

 

 

FUTEBOL E FILOSOFIA

 

 

                        Sempre que professo o meu apreço pelo futebol, há dois tipos de pessoas (com honrosas exceções) que me olham como se eu fosse uma besta nada bestial. O que está implícito é: "Como um ser inteligente e culto pode perder tempo com uma atividade tão reles?"  Quem são estas pessoas tão seletas? As mulheres e os intelectuais. É verdade que, nas ocasiões de Copas do Mundo (Mundiais), o ex-sexo frágil (atual sexo inexpugnável) adere ao futebol com o fervor de um hooligan. Suponho que seja por causa da empatia nacional que o torneio desperta. Aliás, este patriotismo/nacionalismo é um dos aspectos mais perturbantes da modalidade, precisamente porque um dos mais viscerais, ambíguos e irracionais. E se há um item que ínumeros intelectuais receiam - com razão! - é a irracionalidade. Mas não adianta fingir que ela não existe e, até, que exclua ingredientes apetitosos (a emoção é racional? o amor?). Basta repararmos nas letras dos hinos nacionais, com os jogadores marcialmente perfilados no campo, para percebermos onde mora o perigo. O hino da França fala em armas ("Aux armes, citoyens / Formez vos bataillons"). O de Portugal fala em armas ("Às armas, às armas! / Sobre a terra, sobre o mar, / Às armas, às armas! / Pela Pátria lutar / Contra os canhões marchar, marchar!). O da Itália fala em morte ("Siam pronti alla morte / L'Italia chiamò"). O do Brasil, idem.

                       Quanto aos intelectuais, uma vez um deles troçou: "Fiz um transplante de cérebro. Consegui o cérebro de um jornalista desportivo. Assim tenho a certeza de que nunca foi usado". Ora, um sketch impagável do grupo Monty Python apresentava um jogo de futebol entre Alemanha e Grécia, cujos jogadores eram todos filósofos proeminentes. A sempre formidável Alemanha (robôs cruéis, com um estilo mecanizado que no fim triunfa) tinha como capitão o sintético Hegel, e uma tríade atacante de respeito: Nietzsche, Heidegger e Wittgenstein. Já os Gregos, capitaneados por Sócrates, entravam em campo com um indiscutível dream team: Platão na baliza, Aristóteles como central e o matemático Arquimedes no meio do campo.

                       Depois de um tempão de um jogo chato em que nada acontece (como uma partida entre Grécia e Alemanha na vida real), Sócrates marca um golo de cabeça e os Gregos vencem. Arquimedes grita Eureka! Hegel jura para o árbitro (Confúcio) que Sócrates usou a mão, Marx alega que o ateniense fora comprado pela classe dominante e Kant se conforma com aquele imperativo categórico.

                      Bom, acaba de sair no mundo anglo-saxónico o livro "Soccer and Philosophy" (editado por Ted Richards, Open Court, 408 págs, 19,35 euros), uma coletânea de ensaios sobre estas duas, hã, esferas. Convém lembrar que, na Grã-Bretanha, os puristas do futebol chamam à modalidade "football", e não "soccer". Afinal, é o futebol que se joga com os pés, e não o rugby. Adiante.

                      Já o filósofo e romancista franco-argelino (como Zidane....) Albert Camus (que foi guarda-redes da seleção universitária da Argélia), disse um belo dia que "tudo o que sei sobre moralidade aprendi com o futebol". Num dos ensaios mais divertidos - "The Hand of God and Other Soccer... Miracles?" (A Mão de Deus e outro Futebol... Milagres?) -, Kirk McDerrid cita a lista de São Tomás de Aquino dos elementos cruciais que identificam os "milagres autênticos".

                      Robert Northcott discute o conceito de angústia de Kierkegaard aplicado à cobrança de penaltis, ao passo que outro ensaísta invoca as estéticas platônica e aristotélica para dissecar o estilo de jogo de Cristiano Ronaldo, e pergunta: "Será CR9 um Picasso contemporâneo?" Ao que ele próprio responde (não vou traduzir, pois, como disse o outro, poesia é aquilo que se perde na tradução): "Maybe so. But could Picasso bend it like Beckham?"

                      Ao ler ""The Loneliness of the Referee" (A Solidão do Árbitro), um dos melhores ensaios, de Jonathan Crowe, confesso que corei. Afinal, sou daqueles que insultam a genealogia do árbitro remontando até Eva. Se ao menos eles só errassem a nosso favor... Mas não: os sacanas se enganam aleatoriamente! Por outras palavras, o árbitro é a quinta-essência e o arquétipo do bode-expiatório. Eu disse bode? Cabrão!

                    Crowe também assinala que, na "Critica da Razão Dialética", Jean-Paul Sartre (que, na condição de estrábico, dava um goleiro perfeito, neutralizando qualquer balística) irradiou a sua proverbial sabedoria: "Numa partida de futebol, tudo se complica muito pela presença de uma equipe adversária". Com teóricos assim, alguém se espanta que os franceses já estejam em casa? Bom, eles não podem se queixar muito. A casa deles fica em Paris.

publicado por otransatlantico às 10:24
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Segunda-feira, 21 de Junho de 2010

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA DO CEGO

 

 

 

José Saramago

José Saramago

 

 

(Cronica publicada há cerca de 6 meses na "Revista de Domingo", do Correio da Manhã, no lançamento de "Caim")

 

 

Ao contrário da maioria dos meus pares, literariamente prefiro Saramago a Lobo Antunes – mas, politicamente, Saramago. é um bronco (assim é que se arranja dois bons inimigos de uma cajadada só). Ao promover o romance “Caim”, Saramago disse que a Bíblia é um “manual de maus costumes”. Não discuto a fé, pois ela não é provável cientificamente (o que não impede que o decodificador do Genoma Humano, Francis Collins, seja um tolerante cristão). A birra de Saramago. (cujos argumentos estão ao nível dos de “O Código Da Vinci”) é mais velha que Matusalém: o justo que sofre injustificadamente, o sofrimento inocente. Está na própria Bíblia: Jó. Leibniz chamou-lhe teodiceia (justiça divina). Porque diacho havia Deus de consentir o mal no mundo que Ele próprio criara? A resposta de alguns é o livre-arbítrio: Deus não quer crentes/escravos: só há moralidade na liberdade. O chilique de Saramago lembra o ressentimento do qual Nietzsche fala: não suportamos as adversidades, então culpamos algo (no caso, Deus), e sonhamos com um mundo sem dor (dos homens bonzinhos e virtuosos de Rousseau). Tal crítica é, em si, uma forma de covardia diante da dureza da vida. O escritor ignora que não é o “fator Deus” que cria a besta-fera no homem, mas o “factor homem” que gera as atrocidades históricas de que Saramago, muito selectivamente, se queixa. A civilização ocidental foi erigida sobre 3 pilares: a ética cristã (com a sua inédita noção de que a humanidade é uma só e de que todos somos iguais em dignidade), a filosofia grega e a administração e o direito romanos. Saramago renega-os - crê numa outra Escritura Sagrada (o Manifesto Comunista:  a religião é o ópio do povo). Acusa a Deus de não amar as suas criaturas (hã? E “Ama o teu próximo como a ti mesmo?”), – ao contrário dos seráficos Fidel Castro e Kim Il-Jong, possivelmente.Todas as tentativas de fundar um “Paraíso Terrestre” culminaram em inferno (Gulags, etc). O Nobel não entende patavina da natureza humana: quem nunca, jamais, em tempo algum sentiu inveja (a “marca de Caim”)? O cristianismo diz que devemos escolher o bem – não matar o nosso irmão por causa da dor-de-cotovelo. Depois dos anátemas de Saramago contra a Bíblia, fico à espera das críticas dele ao “Corão” (jihad incluída).

(Cronica publicada há cerca de 6 meses na "Revista de Domingo", do Correio da Manhã, no lançamento de "Caim")

 

 

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O momento mais raso da biografia pública de Saramago foi quando dirigiu o jornal "Diário de Notícias", no período ideologicamente turbulento de 1975. Ao assumir, anunciou: "Quem não está com a Revolução, é melhor não estar neste jornal". Os editoriais apontavam alegremente para o porvir radioso da sovietização de Portugal. Quando cerca de 30 jornalistas assinaram um documento de protesto contra a falta de pluralismo no diário, foram (eufemismo sinistro usado em Portugal para expurgos) "saneados". Anos depois, em entrevista ao jornal brasileiro "Folha de São Paulo", Saramago assumiu a responsabilidade da decisão.

Não é verdade que Saramago iniciou a sua ficção já sexagenário - mas quase. "Levantado do Chão", um romance importante, foi editado quando ele tinha 58. Porém, mesmo em Portugal só se tornou realmente conhecido após "O Memorial do Convento", a meu ver a sua obra suprema, a par de "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Apesar de romancista serôdio, era um ficcionista nato, com um capacidade de efabulação exuberante, devidamente controlada pela técnica rigorosa mas não esquemática. Derrapou quando, sobretudo depois do Nobel, arvorou-se em sábio oracular, reduzindo o dinamismo lúdico dos romances à alegorias (Borges sempre advertiu contra elas, e sempre com razão) virtuosas e edificantes, ainda que cheias de fúria e ranger de dentes, com "mensagens" encripitadas. Como o pomposo "A Caverna", em que conjuga Platão e críticas panfletárias aos shopping-centers. As narrativas tornaram-se cada vez mais opacas, rectilíneas e unívocas, em vez de prismáticas, sinuosas e polifónicas.

Um depoimento pessoal. É sempre melindrosa a questão "o artista" e "a sua arte", o criador e a criação, a pessoa real e a obra fictícia. Para ficar apenas nos casos de grandes escritores, e em exemplos recentes, biografias definitivas atestaram que V.S. Naipul (também Nobel) e John Cheever não eram flor que se cheirasse - na verdade, eram uns cactos humanos. Conheci Saramago quando ele próprio ainda não era  célebre, embora já fosse conhecido no âmbito luso. Tanto não era célebre que fazia a ronda dos jornais, para divulgar os seus livros. Pois bem: eu acabara de chegar a Portugal, quase imberbe, e tentava a minha sorte no meu primeiro jornal português (um semanário já finado). Um belo dia Saramago lá apareceu, informando que a sua editora patrocinaria uma jornada de dois dias, num autocarro (ônibus), para a badalação do livro "Viagem a Portugal" (não ficção). E lá fui eu na excursão, juntamente com mais uns 20 jornalistas culturais de diferentes publicações, ciceroneados pelo autor (na época, Saramago ainda ia no seu primeiro casamento, e a respectiva mulher também seguia a bordo).

Eu era quase um adolescente, patologicamente tímido e ensimesmado. Estava em Portugal há 2 meses, mais ou menos caído de paraquedas, e aqui acabaria por expatriar-me (coisa que até então jamais considerara). Não conhecia vivalma, nunca tinha visto mais gordo nenhum dos meus colegas. Entrincheirei-me no assento mais recôndito do autocarro, inibido até à raiz dos cabelos, ao mesmo tempo a fingir-me de morto e de translúcido. Pois, em determinado momento da viagem, Saramago sentou-se ao meu lado. Fazia parte do protocolo e da boa educação, claro, no seu papel de anfitrião e maior interessado na publicidade. Mas não se levantou mais até chegarmos ao hotel - e, a partir daquele instante, "adoptou-me". Nas andanças a pé pelos lugares descritos no livro, flanqueava-me e explicava-me coisas. Era muito, muito inteligente e (já nem falo em literatura) um erudito em história e antropologia ibéricas (postulou a integração de Portugal e Espanha numa Federação Ibérica). Naquela noite, vi neve pela primeira vez na minha vida. Muitos anos depois, Saramago já nobelizado, transfigurei aquele encontro numa passagem do meu romance O SUICIDA FELIZ.

Saramago morreu feliz. Claro que um Nobel ajuda. Mas, sobretudo, morrer com a mulher amada (o amor, como a literatura, despontaram tardiamente), a espanhola Pilar, a segurar-lhe a mão e a sussurrar-lhe as palavras que não apenas um escritor, mas qualquer um de nós, quer levar consigo quando chegar o ponto final.

 

 

publicado por otransatlantico às 10:09
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Quinta-feira, 17 de Junho de 2010

SEXO E OUTRAS COISAS EMBARAÇOSAS

 

Agora que vêm aí a pílula dos 5 dias seguintes, a pílula masculina e o preservativo feminino (Deus seja louvado por este último! Um Oscar, um Nobel e a presidência vitalícia da ONU para o inventor, já!), bom, talvez já seja altura de conhecermos as respectivas intimidades. Conhecer no sentido de informação, não no sentido bíblico. Por exemplo, depois de algumas namoradas (não as suficientes) e duas mais do que suficientes ex-mulheres (quer dizer, elas continuam a ser mulheres, não fizeram operação para mudar de sexo - apesar da experiência comigo -, apenas não são mais minhas cônjuges e não se fala mais nisso), bom, apesar disso, confesso que não faço a mínima ideia de como se põe um tampão, um penso higiénico, um modess. Claro que sei (aproximadamente) onde ele é aplicado, mas não, digamos, a posição, o lado, a profundidade, etc.

 

Portanto, talvez seja o momento de dar o nome aos bois (e às vacas? Não, parece mal. Às cabras? Piorou! Às ovelhas? Nem pensar: soa à zoofilia. Às mulheres, pronto). Convenhamos: é ridículo uma mulher adulta chamar o orgão viril "pila" ou "pirilau" (em brasileiro, regressamos ao bestiário: pinto). O jargão obsceno pode ser excitante do momento certo, mas não a torto e a direito. O mesmo vale para os varões (ops), chamarem "pipi" à genitália feminina.

 

Portanto, eis mais um teste. Leitoras e leitores, ordenem na sequência anatómica correcta os seguintes itens do períneo feminino, do ventre para as costas. 1) ânus 2) meato urinário (o ponto donde sai o chichi) 3) clitóris 4) canal vaginal. Desembuchem: qual a sequência correcta? Não, o telefonema não é para vocês. Não, não estão a tocar à campanhia.

 

A sequência certa é: 3-2-4-1. Acertou? Pinóquio! Político!

 

Imaginem se eu tivesse perguntado a diferença entre pequenos e grandes lábios, ou entre vulva e vagina. Para os cavalheiros, é tudo chinês (e, em alguns casos traumáticos - descobertos na hora H - é tudo pirata!). Quantos homens sabem que o pénis é um clitóris crescido? Freud não sabia, senão não falava na "inveja do pénis" - mas ao menos admitiu que a mulher é "um continente desconhecido", embora não necessariamente uma floresta virgem. Ou que todos começamos mulheres e, em 49 por cento dos casos, as hormonas nos transformam em homens (no meu caso, com H ciclópico)?

 

É melhor parar por aqui. Foi bom para vocês?

 

publicado por otransatlantico às 11:59
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Sábado, 12 de Junho de 2010

ALI E ALÁ

 

 

 

(Maomé suspira no divã: "Outros profetas têm seguidores com sentido de humor!...")

 

Recordo a observação de Salman Rusdhie, de que o fundamentalismo islâmico é uma forma de totalitarismo – e, como tal, bruto como um rinoceronte. Já o nazi Goering espumava: “Quando ouço falar em cultura, puxo da minha pistola!” Pois bem: eu, quando ouço falar em pistola, puxo da minha cultura. Falemos da beldade com miolos que é Ayaan Hirsi Ali. Nascida na Somália, há 39 anos, o pai dela era um dissidente. Ali foi uma muçulmana integrista, disposta a imolar-se por Alá. Mas repugnou-lhe lhe terem infligido a ‘circuncisão feminina’ (remoção do clítoris, e por vezes dos lábios vaginais), assim como o casamento arranjado com um marmanjo que nunca vira mais gordo. Em vez do noivo, escolheu o exílio na Holanda, onde devorou filósofos (Popper, Espinoza, Hayek) e se tornou uma apóstata. Para Ali, boa parte das encrencas sociais, económicas e políticas do mundo islâmico derivam de uma visão distorcida da sexualidade: o disparate de que a honra da família reside na ‘pureza’ das mulheres, reduzida à virgindade. E pimba: ela virou a mulher mais odiada pelos radicais maometanos. Em 2005, numa rua cosmopolita de Amesterdão, um deles espetou um punhal no coração do cineasta Theo Van Gogh, com um bilhete cravado e destinado a Ali: “És a próxima”.

Tristemente previsível é que proeminentes intelectuais ocidentais, como Timothy Garton Ash ou Ian Buruma, rotulem Ali de “uma fundamentalista do Iluminismo" (aliás, um oxímoro). Quando ela é a primeira a frisar que as suas ideias devem ser julgadas por si próprias, e não pela sua biografia acossada. Que a alternativa é entre o tribalismo e o universalismo (mas não o multiculturalismo, nem o relativismo). Já é mais compreensível que, num livro recente, Buruma pareça quase amuado com a beleza e o charme de Ali - digna de uma princesa núbia, de uma rainha de Sabá. Uma enciclopedista boazona? É muita areia para a camioneta de alguns rapazes. Esquecem-se de que o terrorismo corresponde precisamente ao medo terrível de que, em algum lugar, alguém seja feliz. Uma banda muçulmana de hip-hop (sim, é incrível, mas existem) compôs um rap com o refrão: “Que se foda Hirsi Ali/Puta maldita, mancha merdosa/Parto-te a cara, corto-te ao meio!” Eis a voz patibular do obscurantismo. “Calem-se!”, explicam eles. Já as últimas palavras de Theo Van Gogh para o seu carrasco foram: “Não podemos conversar sobre o assunto?” Não, não podiam. A mente de um fanático é como uma pupila: quando mais luz recebe, mais ela se contrai.

 

Book Cover - Varadarajan Ali

 

 

 

Saiu há pouco o novo livro de Hirsi Ali, NOMAD. Um professor disse-me uma vez: "As mulheres são a metade da população mundial, e as mães a outra metade" (reflictam um bocadinho). Ali fala disso, e da sua mudança para os EUA, depois que a hospitaleira Holanda avisou-a de que não podia mais garantir a sua segurança. Enfim, lavaram as mãos - menos como Pilatos, do que como alguém que sabe que acabou de fazer algo no WC. Ouçam-na neste vídeo (em Holandês e Inglês) - e leiam-na sempre que puderem.

 

 

E AYAAN DANDO UM CHEGA PRÁ LÁ EM HITCHENS (COM O COPO NA MÃO)

 

 

publicado por otransatlantico às 18:28
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Sexta-feira, 11 de Junho de 2010

VIVA LA MUERTE?

                        Roberto Bolaño é um caso bicudo. Chateia que se torne um best seller post mortem (ou quando desenganado) e pela sua vida errática, errada ou certa. Na actual idolatria em redor dele, há muito de modismo e necrofilia. De fantasia romântica, ao mesmo tempo mórbida e delicodoce, que o chileno apátrida decerto renegaria. Quantos realmente chegarão ao fim de 2666? Por outro lado, não haverá snobismo em repudiar, com pele de galinha, a mera popularidade (neste caso, pelo menos, literariamente justa)? Deixar o veredicto à posteridade é sempre uma decisão judiciosa. Mas, pensando bem, o que é que posteridade já fez por nós?

                         Convenhamos: a auréola de "mártir da literatura" é um bocado pirosa. Porém, milhões de vezes Bolaño vender milhões, do que essas celebridades televisivas (célebres por serem famosas) venderem biliões de exemplares de romances que chegam às editoras com 50 páginas e saem com 500. Sim, claro que há excepções – para citar apenas duas: Rodrigo Guedes de Carvalho (que não precisa de ajuda para escrever decentemente) e José Rodrigues dos Santos (nenhum ghost writer escreveria tão mal).

                        A “biografia” de Bolaño é o material de que as lendas literárias são feitas: nasceu em Santiago, filho de um camionista (pugilista nas horas vagas!) com uma professora. Músculos + Miolos. Saiu apenas à mãe: disléxico, vítima pioneira do que então ainda não se chamava bullying, um ET em qualquer parte do Universo. Há até dubiedades nebulosas: uns (incluindo ele próprio, no conto Cartão de Dança) proclamam que estava no Chile quando Pinochet deu o golpe sem misericórdia, que foi preso e sobreviveu por um triz. Amigos dele confidenciaram ao New York Times que, naquela altura, Bolaño laureava a pevide no México, na boa.

                        Morou em El Salvador (pessoalmente, só vendo acredito na existência de El Salvador). Depois, a montanha-russa - ou comboio-fantasma - do costume: lavador de pratos (o que faço todos os dias, sem falar nos talheres), homem do lixo (que produzo diariamente, sem autocrítica), funcionário de um parque de campismo (eu apenas dou barracas), etc..

                        O nascimento do filho tornou-o “responsável” – o que é um bocadinho, digamos, burguês (mas eu sou o pai mais burguês do mundo, só que sem o capital). Cunhou esta frase tocante mas imprevidente: “O meu único país são os meus filhos” (não contes com a vice-versa, meu caro) . Zangou-se com Isabel Allende, o que é louvável, e foi defendido por Ariel Dorfman, o que é menos meritório. Morreu de uma “doença hepática”, depois de tsunamis de álcool e heroína, diagnóstico que tanto Villa-Matas como a viúva refutam. (Quando morrer, quero que os meus amigos e as minhas viúvas jurem a pés juntos que parti todo pujante!)

                        O melhor é lê-lo. Quanto a mim, apraz-me o pedantismo sardónico de 2666. À páginas tantas, dois personagens tagarelam sobre fobias, e nada menos que 31 delas são meticulosamente catalogadas. Outra passagem ocupa-se de erros canhestros cometidos por escritores, e treze deles são apontados, como este, do francês Alphonse Daudet: “O duque apareceu seguido do seu séquito, que ia à frente”.

                        Já o vídeo que reproduzo vale por si próprio.

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publicado por otransatlantico às 12:17
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Quarta-feira, 9 de Junho de 2010

O BELO MALDITO

 
Quando o herói sorveu a sua última dose de heroína, saltou, caiu ou foi atirado de uma janela do segundo andar de um hotel de Amsterdão, no dia13 de Maio de 1988. Tinha 59 anos, mas aparentava o dobro da idade de Manoel de Oliveira. Ao contrário de James Dean, com quem se parecia fisicamente, não viveu depressa nem deixou um corpo bonito. Na verdade, a queda gravitacional foi apenas a concretização de um tombo artístico - musicalmente, ele já estava morto há muito tempo, conservado criogenicamente na sua cripta pela generosidade um tanto necrófila das plateias europeias. OK, na maturidade até o anjo exterminador Rimbaud se tornara um Rambo, traficando armas e escravos e passando todas as temporadas no Inferno. Mas foi chato que Chet acabasse assim (bem antes de se esfacelar na calçada, traficantes californianos já lhe haviam partido os dentes, dificultando o uso do trompete). A polícia recolheu os destroços no passeio mas não houve autópsia - certamente, esta revelaria que o organismo dele tinha degenerado num "maelstrom" (apud Poe). Idem Charlie Parker, ibidem Billie Holiday. Nos bons e velhos tempos, a voz de Chet era afinada e doce como uma harpa - ou, se ele preferisse, pungente e arquejante como um desespero tranquilo. No fim, cantava como se o Hulk o estivesse a estrangular (reparem na sua interpretação de "Every Time We Say Goodbye", de Cole Porter, com o verso que soa a réquiem/epitáfio: "I die a little"). Triste? De mais. Mas sejamos francos: Chet não era da mesma divisão que Bird, Billie Holliday e Coltrane, os trágicos mais sublimes do panteão jazístico. E, apesar das associações à Bossa Nova (confirmadas por João Gilberto), Chet nunca foi cool, vaporoso, etéreo, rarefeito. Pelo contrário, habitava o reduto mais crispado e neurótico do jazz, como Miles Davis. Merece os versos do bardo: "Não conseguiu firmar o nobre pacto/Entre o cosmos sangrento/E a alma pura/Tanta violência/Mas tanta ternura".
publicado por otransatlantico às 12:19
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Terça-feira, 8 de Junho de 2010

REPERCUSSÃO DESTE BLOG!

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Recebi milhares de e-mails com comentários sobre a estreia mundial deste falso modesto blog. Eis os mais mediáticos. “Comi imensas inglesas graças às dicas do seu blog” (Zezé Camarinha). “Também eu” (Mgumba Gungala, do “Canibal Review of Books”). “Este blog é tão bom que vou usá-lo na minha próxima coluna” (Clara Pinto Correia). “Experimentei mas não gostei. A página devia ter um formato mais anatómico” (Cicciolina). “Li cada post umas 50 vezes. Não tinha mesmo nada para fazer” (Mário Soares). “Parece nice. Mas por enquanto só consegui soletrar a primeira linha.” (Joe Berardo). “O seu blog é uma droga. Sensacional!” (Amy Winehouse). “O blog está tão bem escrito que até parece meu” (António Lobo Antunes). “O blog está tão mal escrito que até parece do António Lobo Antunes”. (José Saramago). “Na minha última escalada aos Himalaias, a coisa mais parecida com uma mulher que vi foi o seu blog” (João Garcia). 

publicado por otransatlantico às 12:51
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DEBAIXO DO VULCÃO

 
Como Malcolm Lowry estava careca de saber, há imensas coisas para se fazer debaixo de um vulcão. Sobretudo se ele chamar-se  Eyjafjallajökull
publicado por otransatlantico às 09:58
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Domingo, 6 de Junho de 2010

PUSHKIN, O EMBAIXADOR E EU

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Há 20 anos, entrevistei o embaixador do Brasil em Portugal (já não me lembro a propósito de quê - afinal, já faz muito tempo: há duas décadas eu era pelo menos 30 anos mais novo. Ele recebeu-me com uma cordialidade fleumática, um nadinha alheada, como se tivesse mais o que fazer (duvido). Mal podia imaginar que, anos depois, eu seria um escritor mundialmente famoso em Caxias. Bom, vida que rola, saiu esta semana a edição brasileira de Eugênio Oneguin - que eu saiba, a primeira tradução portuguesa da obra-prima de Pushkin, depositado por muitos no mesmo pedestal da DIVINA COMÉDIA de Dante, do FAUSTO de Goethe e das peças e sonetos de Shakespeare. Ora, agora adivinhem lá quem é o tradutor? Dario de Castro Alves, o mesmo embaixador (hoje ex) que entrevistei no século passado. Já sabia que ele era um literato, e até um especialista em Lisboa, sobre a qual publicou um livro: ERA LISBOA E CHOVIA. Se fosse sobre Londres, bastava intitular-se ERA LONDRES. Se a tradução é boa? Sei lá, não vi. Li Oneguin numa tradução inglesa, comprada num alfarrabista ao pé do Royal Observatory (foto), em Greenwich, juntamente com uma airosa mas veterana edição de bolso de EMINENT VITORIANS. Sei é que a tarefa não é canja: só em inglês há mais de dez versões do Eugénio Oneguin, nenhuma considerada plenamente satisfatória, incluindo a de Vladimir Nabokov, que era russo e um craque no idioma de Shakespeare (por causa da sua tradução de Puhskin, brigou com o proeminente crítico e até então amigo do peito Edmund Wilson, o qual, por sua vez, também tentou a sua sorte com Oneguin). Sim, mundo pequeno. Mas é o que há. Pushkin morreu em 1837, num duelo (os escritores não têm lá muito jeito para duelos - há vários casos em que dispararam, ou espetaram, demasiado tarde). Borges, como sempre, tinha um ideia intrigante: a de que os países tendem a entronizar como os seus supremos vultos literários os autores que menos espelham o carácter nacional. Assim, um Shakespeare passional numa Inglaterra minimalista e protocolar, um Goethe universalista numa Alemanha nacionalista, um Cervantes espirituoso e tolerante na Espanha monástica e austera da Inquisição. E um Camões o quê? E um Machado idem? Ah, Pessoa está bem, a emborcar a penúltima no Martinho, tristinho da silva. Por falar em Machado de Assis e no ex-embaixador Castro Alves, um dos principais poetas românticos brasileiros chamou-se Castro Alves. No primário, tínhamos um gracejo tontinho: "Quem castrou Alves? O machado de Assis!". Sim, é um mundo pequeno (e não dos melhores).

 

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publicado por otransatlantico às 14:48
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A ÚLTIMA CEIA DO MODERNISMO

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MARILYN MONROE LENDO O "ULISSES", de JOYCE

 

 

 

Há quase 90 anos, foi celebrada a «Última Ceia» do Modernismo europeu. No dia 18 de Maio de 1922, um «dinner party» no sumptuoso hotel Majestic, em Paris, reuniu à mesma mesa um punhado de duques e duquesas do Faubourg Saint-Germain. Mas os convidados de honra eram plebeus, um quinteto de colossos que marcaram para sempre a arte contemporânea: Serge Diaghilev, Igor Stravinsky, Pablo Picasso, Marcel Proust e James Joyce. Por causa deles, o encontro representou muito mais do que uma mera «soireé» género revista «Caras». Correspondeu, na verdade, ao zénite simbólico de um movimento cultural e até de um modelo de civilização, que tinha em Paris tanto a sua Meca como a sua Babilónia.

O pretexto para o regabofe residia na estreia do bailado «Renard», de Stravinsky, dançado pela companhia Ballets Russes, de Diaghilev, cuja sacrossanta missão consistia em «épater les bourgeois». Os anfitriões eram um casal de judeus ingleses ricos e cultivados, Sydney Schiff (escritor bissexto) e sua mulher Violet, uma «socialite» intelectual. Além dos cinco titãs, havia outros convidados VIP. Por exemplo, a princesa de Polignac, uma «dominatrix» lésbica que, segundo as cascavéis mais venenosas, lembrava um chefe comanche. Ou o bailarino Nijinsky, com os seus músculos de aço a palpitar sob as calças justíssimas. Ou o «enviado especial» do Grupo de Bloomsbury, Clive Bell, sobrinho dilecto de Virgínia Woolf. Violet e Sidney esperavam que, com toda aquela massa cinzenta a bordo, o sarau se transfigurasse num «event». Aptidões não lhes escasseavam: segundo T. S. Eliot, o casal «tinha o condão de arregimentar pessoas muito diferentes e fazer com que elas combinassem como pão e manteiga».

Os acontecimentos mostrariam, contudo, que os Schiff estavam a cometer um erro crasso e fatal: sobrestimar as capacidades gregárias dos artistas, sobretudo dos escritores. Ou seja, alimentavam a expectativa de que os seus comensais (principalmente Proust e Joyce) fossem tão cintilantes e carismáticos em carne e osso como no papel, prodigalizando um manancial de «bon mots» e epigramas imperecíveis. Oscar Wilde de facto era assim, mas a maior parte dos criadores prefere aplicar o seu génio nas suas obras, e quando muito deixar o talento para a vida (se sobrar algum). Afinal, como assinalou Beckett na sua monografia sobre Proust, «a arte é a apoteose da solidão».

À primeira vista, porém, 1922 parecia a altura ideal para uma festança olímpica, para o bem ou para o mal. Fora naquele ano ainda pintado de fresco que saíram o «Ulisses», de Joyce, e «The Waste Land», de Eliot. James Frazer lançara o «clássico instantâneo» da antropologia, «The Golden Bough», e Wittgenstein anunciara ter resolvido todos os problemas filosóficos, no seu recém-nascido «Tractus Lógico-Philosophicus». E, apenas mais uns mesinhos adiante, Marcel Proust pingaria o ponto final no ciclópico «À La Recherche du Temps Perdu». Enquanto isso, lá fora, Nils Borh embolsava o Nobel de Física, Howard Carter exumava a tumba de Tutankamon e Mussolini tomava o poder.

O próprio cenário não podia ser mais aconchegante. Mesmo que o Majestic, situado na avenue Kléber, tivesse sido a segunda escolha dos anfitriões: o Ritz acabou descartado porque não permitia que se tocasse música depois da meia-noite – e àqueles semideuses podia apetecer um pezinho de dança. Quanto à ementa, os cozinheiros sonhavam  agradar tanto aos exilados russos – caviar e entradas moscovitas – como aos proustianos e joyceanos militantes: espargos, «bouef en gelée», «pudding», «bearnaise sauce», tarte de amêndoas com café e gelado de pistache.

Diaghilev, na condição de braço direito dos Schiff, ungiu-se em mestre-de-cerimónias: tomou da palavra e saudou os presentes, enquanto a sua abundante cabeleira, empastada de brilhantina, exalava um intenso perfume de flor de amendoeira. Stravinsky perfilava-se na sua silhueta esguia, de nariz protuberante, cabeça oval, ombros caídos e bigode ralo. Picasso (que já em 1906 convulsionara o panorama artístico com «Les Demoiselles d’Avignon», dando o pontapé de saída no Modernismo), sentia-se como um peixe na água em qualquer ambiente – fosse um aquário, fosse o Oceano Pacífico. Acintosamente à vontade, envergava um cachecol catalão juntamente com o smoking. Todos tinham aguardado ansiosamente a chegada de Proust e Joyce, e agora o sentimento era uma mistura de embaraço e consternação. O autor de «Ulisses» entrou na sala privada do Majestic bastante atrasado. Pior: estava visivelmente com os copos – por assim dizer, torrencialmente enfrascado. Proust, por sua vez, só fez a sua aparição às duas da madrugada, abusando do conceito de «dinner-party». Eis como Clive Bell descreveu a cena: «Joyce manteve-se taciturno, com a cabeça apoiada numa mão e uma taça de champanhe à sua frente. Passado um bocado, simplesmente ferrou no sono, e desatou a ressonar alto e bom som. Proust, uma figura minúscula e janota, usava umas luvas pretas e brancas que pareciam de criança. Quanto a Picasso, exuberante e autoritário como sempre, tinha uma melena de cabelo sobre um olho como uma pala de pirata, e emanava uma energia napoleónica».

Proust estava bem distante dos tempos em que era um alpinista social snobe, conhecido como «o Proust do Ritz», quando chegara  a se declarar feliz e honrado por ter apanhado uma constipação de Lord Derby, na medida em que dessa forma germes brasonados haviam invadido o seu organismo… Quem o vira e quem o via! Dantes, não perdia uma badalação, financiava um bordel masculino, dava gorjetas principescas (de 300 francos) e até desafiava desafectos para duelos (disparou duas vezes contra o jornalista Jean Lorrain, falhando ambas por apenas alguns quilómetros).

Agora, o antigo cortesão jazia enclausurado no seu quarto forrado à cortiça, rabiscando e ditando as derradeiras páginas de «À La Recherche» para a sua criada Celeste. Mais: desenvolvera uma verdadeira fobia anti-social. No Reveillon de 1921, já se preparava emocionalmente para enfrentar o jantar no Majestic, e bombardeava os anfitriões com bilhetinhos pungentes: «O pavor de não conseguir comparecer ao vosso jantar obrigou-me a consumir medicamentos em tal quantidade que irão receber uma criatura afásica e de pernas bambas». Houve mesmo um incidente insólito e arrepiante: no intuito de fortalecer o seu ânimo, o escritor ingeriu uma dose cavalar de adrenalina, que por um triz não lhe estropiou a garganta. Resultado: passou um mês sob uma dieta que se restringia a gelado e cerveja bem fria, que mandava buscar ao Ritz. Antes de seguir rumo ao Majestic, pediu pelo menos dez vezes a empregada que telefonasse aos Schiff, para se certificar de que seria acolhido com «uma chávena de chá a ferver», e de que não existiam ignóbeis correntes de ar no recinto. Em 1921, a hipocondria de Proust chegou a tal ponto que a sua correspondência tinha de ser desinfectada a vapor. Ocasionalmente, os cuidados eram justificados: certa vez, no restaurante Le Boeuf sur le Toit, estalou uma zaragata e o escritor escapou por um triz de ser atingido tanto por um balde de gelo como por um frango assado.

Se no âmbito mundano as coisas para Proust tinham mudado, no aspecto literário o panorama também não era propriamente o mesmo. Depois das dificuldades preliminares para editar a sua obra (para sua eterna vergonha, Gide recusou o manuscrito em nome da NRF), quando o primeiro tomo de «À La Recherche» foi finalmente publicado pela Grasset a genialidade do autor foi ofuscante – o livro ganhou o prémio Goncourt do respectivo ano e Gide escreveu uma carta a Proust com um pedido de desculpas («será para sempre o maior remorso da minha vida»). Todavia, pouco antes do jantar no Majestic saíra o quarto volume, «Sodoma e Gomorra», e franqueza do conteúdo homoerótico estarreceu quase toda a gente. A crítica em geral saudou o romance com um silêncio glacial – mas alguns aproveitaram para desopilar o fígado. O próprio Paul Valéry fez uma careta: «A vida é demasiado curta. Proust é demasiado longo». Louis-Ferdinand Céline esgrimiu a sua proverbial truculência: «Proust explica demasiado para o meu gosto: trezentas páginas para nos explicar que Tutur enraba Tatave, é um pouco de mais». Um pouco mais tarde, até Vladimir Nabokov espetará a sua farpa: «As cenas de amor entre Albertine e o narrador só fazem sentido se o leitor souber que o Narrador é maricas, e que as nádegas de Albertine são na verdade as nádegas de um certo Albert».

Na sua monografia sobre o jantar dos Schiff («A Night At the Majestic»), Richard Davenport-Hines observa agudamente que, naqueles dias, Proust era «um homem a tentar manter a sua alma viva». O cativante livro de Davenport-Hines, ao mesmo tempo conceptual e mexeriqueiro, fornece uma esplêndida definição de «A La Recherche», descrevendo-a como uma obra teológica para um mundo secular, «um romance sobre a eternidade escrito por alguém que não acreditava nem no Céu nem no Inferno».

Patinando em tal contexto, não admira que mesmo uma criatura tão arguta e polida como Proust fosse, naquelas circunstâncias, uma bomba de relógio de gaffes atrás de gaffes. Poucos instantes depois da chegada do escritor, a princesa Violette Murat abandonou a sala majestosamente, esfaqueando Proust com o olhar. O ficcionista nem precisou de abrir a boca: a princesa estava mortalmente ofendida com os boatos de que uma das personagens mais sovinas de «A La Recherche» tinha sido inspirada nela. A seguir foi a vez de Stravinsky, o qual se encontrava sentado, hirto como uma tábua de engomar, numa espera angustiada pelas primeiras críticas ao seu noivo bailado. Pois bem: Proust acercou-se dele e, em vez de o encorajar, desatou a enaltecer os quartetos de Beethoven. Stravinsky limitou-se a espumar: «Detesto Beethoven!» – e virou a cara para o outro lado.

Restava James Joyce, que depois da soneca se recompusera da bebedeira, mas continuava a sentir-se inquieto por causa do seu traje, que considerava inadequado e pindérico. O homérico «Ulisses» acabara de ser publicado, e o autor descobrira que santo de casa não faz milagres, ao ouvir a sua mulher gemer perante aquela prosa abstrusa: «Por que é que tu não escreves livros que as pessoas possam ler?»

A primeira e única conversa entre os dois maiores escritores do século XX é um dos mitos mais acalentados da história literária, quase tão dissecada como o sorriso da Monalisa. Joyce, na frase memorável da Sylvia Beach, «tratava toda a gente igual, fossem crianças, princesas, escritores ou mulheres-a-dias (faxineiras)». Mas o facto é que a inevitável rivalidade entre ambos se mostrava latente, com as respectivas facções proclamando a supremacia de um ou do outro e deitando lenha à fogueira. O diálogo arrancou não exactamente da forma mais profunda: «Gosta de trufas?», perguntou Proust. Joyce encolheu os ombros e respondeu: «Sim, gosto». O pingue-pongue não melhorou lá muito, com uma procissão de anti-clímaxes. «Nunca li o ‘Ulisses’», confessou Proust, compungido. «Não se preocupe», resmungou Joyce. «Eu tão-pouco li os seus livros». A seguir, o francês queixou-se amargamente do seu estômago, e o irlandês dos seus olhos. Anos mais tarde, Joyce evocou o encontro: «Não tínhamos muito em comum. Eu só queria falar de criadas, e ele só queria falar de duquesas. Perguntou-me se eu conhecia uma certa duquesa Fulana de Tal, e respondi que nunca a tinha visto mais gorda».

Mas o convívio ainda prometia piorar bastante. Quando o jantar por fim acabou, um Proust quase exangue apanhou um táxi para regressar ao seu santuário de cortiça. Ao indicar a direcção ao motorista, Joyce invadiu o carro intempestivamente e instalou-se ao lado do escritor francês. Como se não bastasse, abriu a janela do automóvel e acendeu um cigarro. O asmático Proust, pálido como um lírio, lamentou não ter trazido uma pistola para aperfeiçoar a pontaria. Quando o táxi parou diante da sua casa, Proust disse ao taxista que partisse o mais depressa possível, sem convidar Joyce a entrar, como mandava a etiqueta.

Apenas seis meses depois da folia patrocinada pelos Schiff, Marcel Proust morreu. E, como tantas vezes acontece, nada como um último suspiro para que as pessoas reconsiderem as suas opiniões a respeito de um nosso semelhante. Nas exéquias do autor de «La Recherche» – tão concorridas como as de Victor Hugo – toda a França parou. Joyce, Diaghilev, Maikovski e Cocteau, entre muitos outros, foram ao funeral. Pouco antes de expirar, Proust tinha ditado à criada Celeste as derradeiras correcções nas provas da sua obra-prima – uma passagem sobre a morte do escritor Bergotte. Agora, ninguém diria de Proust o que Oscar Wilde dissera no enterro de um compatriota: «Bernard Shaw não tem um inimigo no mundo. Em compensação, nenhum dos seus amigos gosta dele». É que Proust não tinha perdido o seu tempo – o moderno agora era, finalmente, eterno.

 

(Texto publicado no caderno Actual, do semanário Expresso)

publicado por otransatlantico às 12:54
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MAILER, VIDAL, CAVETT

 

 

NORMAN MAILER COM A SEXTA MULHER, NORRIS. SIM, POIS...

 

Só admiro um romance de Norman Mailer, mas admiro muitíssimo: OS NUS E OS MORTOS, escrito aos 25 anos. Mailer morreu em 2007, aos 84 anos, mas está tão saidinho da casca como sempre, com a "Maileriana" a fervilhar. Fundada em 2003, a Norman Mailer Society não deixa nem o defunto nem nós descansarmos em paz. A antiga casa do escritor, em Provincetown, foi convertida num santuário. Excertos da torrencial correspondência de Mailer são publicados, dia sim, dia também, na Playboy, na New Yorker, na New York Review of Books. Uma nova biografia do autor está a emergir do tinteiro de Stephen Schiff, da Vanity Fair. Nada menos que 3 memórias protagonizadas por Mailer saíram este ano: MORNINGS WITH MAILER (do seu assistente e cozinheiro), A TICKET TO CIRCUS (da viúva dele) e LOVING MAILER (de Carole Mallory, uma das inúmeras, hã, amantes do escritor). Mailer foi casado seis vezes e, embora tenha esfaqueado uma das cônjuges, é justo admitir que nunca recorreu aos métodos terminais de Henrique VIII para seguir em frente.

 Herdeiro da persona macho alfa de Hemingway, o chato é que nenhuma das suas personagens femininas (incluindo a medonha biografia que escreveu sobre Marilyn Monroe) é plausível. Mas deixemo-lo momentaneamente de lado. Já ouviram falar de Dick Cavett? É um ícone da TV americana, e a partir dos anos 70 pilotou o mais sofisticado talk show de todos os tempos (mil vezes melhor que Johnny Carson ou Jay Leno). Atenção: nos EUA, os talk show são diários - os astronómicos salários auferidos pelos apresentadores são a compensação por nunca terem tempo de os gastar. OK, tudo isto para que curtam o vídeo abaixo. É uma sessão particularmente memorável do DICK CAVETT SHOW, pois nele relativamente jovens Norman Mailer e Gore Vidal esgrimem insultos epigramáticos e sanguinários, com uma ou outra estocada não menos homérica do anfitrião. HEMORRAGIA!!! Bon apetit....

 

 

 

 

 

 

 

publicado por otransatlantico às 11:44
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Sábado, 5 de Junho de 2010

O REI DESTA SELVA VAI NU

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Se a Europa está de tanga, nada mais urgente do que falar sobre um especialista no assunto: Tarzan. Sobretudo porque o pai de um dos mais populares heróis da ficção universal também morreu com um trapinho a tapar os países baixos. Como é que é possível? Afinal, criar Tarzan era como receber uma licença vitalícia para imprimir dinheiro… Edgar Rice Burroughs urdiu o Rei das Selvas em 1912, sem nunca ter posto os pés em África. O primeiro romance combinava a lenda romana de Rómulo e Remo com Mógli, de Kipling. O autor nunca vira mais gordos o “bom selvagem”, de Rousseau, ou o Ubermensch (Super-Homem), de Nietzsche, antes que alguns cabotinos os invocassem para “explicar” Tarzan. E, se abriu o seu exemplar de “A Origem das Espécies”, de Darwin, foi para o colorir – não, não é maldade minha: um biógrafo examinou esse exemplar e jurou que não fora lido, embora Burroughs tivesse desenhado um macaco na primeira página. Tarzan estreou-se numa revista popularucha e, para pasmo do próprio autor, a idolatria foi instantânea. Seguiram-se 23 romances, a uma média de um a cada dois meses – os quais, apenas em vida do escritor, venderam cerca de 60 milhões de exemplares só nos EUA e foram traduzidos para todas as línguas. Foi então que Burroughs se tornou um pioneiro da actual crise financeira. Deslumbrou-se com a opulência e torrou tudo (incluindo numa inepta Disneylândia, a Tarzana), se endividando mais do que o BPN e o BPP juntos. Morreu em 1950, de pires na mão. No cinema, Tarzan teve imensos cabides, mas nenhum como Johnny Weismuller, nadador e recordista olímpico. Era perfeito para o papel, com o seu ar singelo e simiesco. Quando ele exclamava “Grmmmf!” ou “Afumalakatchumba!” para o seu elefante, o público acreditava nele – e o elefante também. Para engendrar o famoso rugido do herói, a Metro produziu uma miscelânea de vozes e ruídos, entre os quais uma soprano de ópera e sirenes de ambulância. A Jane desse supremo Tarzan foi Maureen O’Sullivan, mil vezes mais bonita que a sua filha, Mia Farrow. Se duvidam, assistam a “Tarzan and His Mate”, com aquela Eva africana a nadar nua no fundo do rio – sequência cortada no cinema mas exumada no DVD. Lição da desgraça de Burroughs? Bem, Hemingway disse um dia: “As três piores coisas na vida de um escritor são: dinheiro, bebida e mulheres. As três melhores, também”.

 

publicado por otransatlantico às 20:34
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QUEM TEM K SEMPRE ESCAPA

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Desde que a crise financeira desembestou, o nome dele tilinta. Quando Obama anunciou um plano para a criação de 2,5 milhões de empregos até 2011, as trombetas rugiram: KEYNES! E, com a nacionalização do BPN, de novo: KEYNES! Quem? John Maynard Keynes (K), um dos maiores economistas da história – mas será que ele brotou do sarcófago como um Tutankamon, ressuscitado pelo fiasco do livre-mercado e o banzé financeiro? Nada. K nunca saiu de cena – os anos 1945-1975 foram mesmo chamados “A Era Keynes”. E antes ele publicou um livro profético, avisando que as reparações impostas à Alemanha após a I Guerra causariam a II (bingo!). Simplificando, K postulava que política fiscal deve ser esgrimida para compensar as oscilações dos ciclos económicos. Foi o mentor do New Deal, de Roosevelt. Muitos políticos adoram o keynesianismo porque acham que ele legitima a sofreguidão deles por torrar dinheiro público (carteiristas do nosso bolso). Parte da Esquerda perfilhou K como meio de manter o credo socialista sem apoiar o totalitarismo soviético. Mas K não era de esquerda, socialista ou estatista, nem aqui nem na China (aliás, sabem porque os chineses são tão parecidos uns com os outros? Porque são todos cópias piratas!). Ora, a ideia de que os mercados são totalmente desregulados é besta. Há normas para quase tudo: abrir o capital de empresas, operar bancos, produzir medicamentos ou pôr um táxi na praça. Quimeras à parte, o Estado é indissociável do capitalismo. Raios, é dele que emanam as garantias de direitos de propriedade e de respeito aos contratos, assim como a defesa da concorrência (é ele quem coíbe os cartéis). Sem regras claras e ajuizadas pelo árbitro estatal, não há pontapé de saída no futebol do mercado. Nem a Internet existiria sem o Estado. K integrou o Grupo de Bloomsbury, uma plêiade de artistas e intelectuais britânicos em que pontificava Virginia Woolf. Foi inabalavelmente gay até conhecer a bailarina Lydia Lopokova, dos Ballets Russos de Diaghilev, onde Niijinsky dançava conforme a música e Picasso pintava o caneco. Lopokova (na foto, a saracotear com K.) devia ser feérica – Picasso retratou-a muitas vezes e J.M. Barrie (o criador de Peter Pan) dedicou-lhe uma peça. Mais assombroso ainda, ela converteu K às maravilhas da heterossexualidade: casaram e foram felizes para sempre (ao contrário dos outros membros daquele cenáculo – e da maioria de nós –, infelizes no amor). Resumindo: Keynes não voltou, porque nunca foi. Ah, um dia, ele – supostamente estatizante e planeador inveterado – ouviu alguém falar em “longo prazo”. Grunhiu: “Ora, a longo prazo estaremos todos mortos”.

 

(Texto publicado na revista de Domingo do Correio da Manhã)

 

 

publicado por otransatlantico às 20:28
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ENTREVISTA UMBERTO ECO

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NÃO CONVIDARIA UMA MULHER DE RUBENS PARA JANTAR

 

Em Outubro passado, Umberto Eco serpenteava pelos labirintos da Feira do Livro de Frankfurt com uma beata de cigarro apagada a pender dos lábios, como um lúgubre chupa-chupa. Tratava-se de um protesto mordaz ao recentíssimo anti-tabagismo vigente. Um mês antes, a Alemanha era um dos raros países da UE onde ainda podia fumar-se até em comboios. Daí o incongruente ar ensimesmado do semiólogo-romancista, em tantos aspectos um italiano típico – os italianos não se limitam a falar pelos cotovelos: fazem-no como se tivessem uma batuta invisível na mão.

Aos 75 anos, é redundante assinalar o prestígio de Eco. Em Itália, é consensualmente considerado o herdeiro de Benedetto Croce – uma espécie de mentor e consciência da nacionalidade. Tanto que, em 1992, foi dele a palavra definitiva sobre a “Operação Mãos Limpas”, que meteu na cadeia 300 personalidades públicas, entre deputados e senadores, e levou à renúncia nove ministros. “Eis o nosso 14 de Julho de 1789”, sentenciou Eco. Em 2005, foi eleito pela revista inglesa “Prospect Magazine” o segundo intelectual vivo mais influente do planeta (desgraçadamente, o destrambelhado Noam Chomsky, um Michael Moore alfabetizado, ficou em primeiro).

Director da Escola Superior de Ciências Humanas da Universidade de Bolonha (a mais antiga do mundo), está a lançar simultaneamente em 20 línguas o tratado “História do Feio”, uma espécie de outro lado da moeda de “História da Beleza”, de 2004. A meu ver, ambos correspondem a uma réplica muito tardia (mas inexorável) à acusação lançada a São Tomás de Aquino, de não reflectir sobre a estética, especialmente sobre o belo. Ora, toda a primeira fase da ensaística de Eco é devotada àquele doutor da Igreja…

PAULO NOGUEIRA: Porquê agora um livro sobre o Feio? Uma questão de simetria – portanto, de Beleza?

ECO: (Risos) Nem por isso… A resposta previsível seria a de que a minha dissertação de douramento foi sobre a estética, e a beleza e a fealdade são o meu trabalho. Por outro lado, uma resposta mais pormenorizada é a de que, em 1961, iniciei “A História da Beleza” para o meu editor (Bompiani), e a minha assistente era a rapariga com que depois casei, Renate Ramge. Então, e como frequentemente acontece nas editoras, por razões orçamentais decidiram suspender a elaboração da obra. Meti os meus ficheiros numa gaveta e desposei Renate. Quarenta anos mais tarde, um amigo que produz CD-ROMs pediu-me a sugestão de um tópico para um novo projecto, e propus-lhe “A História da Beleza”, de modo a reabrir aquela gaveta, mesmo que após quatro décadas toda a investigação tivesse de recomeçar da estaca zero. Passado algum tempo, a Bompiani resolveu transformar o CD num livro e – contrariando todos os prognósticos – um dispendioso volume sobre arte se tornou um sucesso e foi traduzido para 27 idiomas. O editor solicitou-me em seguida um novo livro do mesmo género. Respondi-lhe: “Ouça, ‘A História da Beleza’ vendeu tanto por causa do seu título apelativo, independentemente do conteúdo. E não há outro título tão apelativo”. Pouco depois, porém, ocorreu-me a ideia de virar a coisa toda de pernas para o ar, e exclamei: “A História do Feio!” Foi assim que tudo aconteceu, sem tirar nem pôr. Subsequentemente, descobri como era excitante explorar o imenso continente da Fealdade.

Considere que, ao longo da história, houve infinitas teorias da Beleza, mas muito poucas teorias da Fealdade. Tratou-se de uma das experiências mais emocionantes da minha vida. No caso da Beleza, bastava examinar os filósofos que a definiram, e a antologia era fácil de compilar. Com a Fealdade, na medida em que existiam tão escassos textos, foi necessário desbravar um imenso território de descrições literárias de experiências com o feio, e a pesquisa acabou por ser bastante divertida.

PN: As definições da fealdade parecem ter mudado no curso dos séculos. O senhor tem a sua própria?

ECO: Não. Caso contrário, este livro seria ou inútil ou redundante. Como a noção da Beleza, a da fealdade varia consoante as eras, e de cultura para cultura. No que diz respeito a Beleza, certos aspectos básicos permaneceram constantes (ao menos na tradição Ocidental): por exemplo, a ideia de que a experiência da Beleza requer sempre um certo distanciamento, no sentido de que o objecto deve ser contemplado sem qualquer anseio de posse ou consumo. Ora, se a Fealdade consistisse simplesmente no oposto da Beleza, diríamos que aquela suscita mais envolvimento emocional. O que até é correcto para aquilo que é repelente, repugnante ou obsceno, mas podemos também experimentar a Fealdade em situações cómicas ou grotescas, nas quais o objecto ou a pessoa feias são contempladas com curiosidade ou divertimento, sem qualquer sensação de rejeição. Pense nos Sete Anões da Branca de Neve; em comparação com George Clooney são certamente feios, mas consideramo-los deveras simpáticos. A noção de Fealdade abarca mais fenómenos do que a de Beleza. Por esta razão, para mim foi mais interessante editar este livro do que o anterior.

PN: Dir-se-ia que os monstros sempre existiram, dos demónios marinhos dos Gregos Antigos aos filmes de terror contemporâneos. Há algum de comum entre eles?

ECO: Uma das mais clássicas definições da Beleza fala diz que as suas características são a proporção e a integridade – e integridade significa que um objecto acima de tudo deve apresentar todos os aspectos que cada objecto da sua respectiva espécie apresenta. Neste sentido, uma pessoa mutilada jamais era considerada bela, um anão era demasiado pequeno e um gigante demasiado grande para serem “normais”. Assim, em todas as culturas, os monstros ou não tinham o que deveriam ter (como o monocular Cíclope), ou tinham em excesso (duas cabeças, inúmeros braços, e assim por diante). Mas isso não quer dizer que os monstros foram sempre considerados repulsivos. Muitos deles foram considerados feios porém interessantes, e a Idade Média inteira sustentou que eles participavam da harmonia universal. Com frequência, foram mesmo encarados como símbolos benevolentes de valores e virtudes espirituais. Em geral, os monstros tendiam a expressar o gosto humano pelo Maravilhoso.

PN: O senhor não aprofunda o conceito de Fealdade nas culturas não-Ocidentais – asiáticas ou africanas, por exemplo. Alguma razão especial?

ECO: Adoptei o mesmo critério usado n’A História da Beleza. É bastante difícil afirmar que algo que nos parece feio inspira o mesmo efeito num membro de outra cultura. Para a cultura ocidental, podemos comparar imagens artísticas ou descrições literárias com textos teóricos, e concluímos se naquela época um dado objecto ou uma determinada pessoa eram considerados feios ou não. Muitas vezes o contexto histórico ou a referência a outros textos pode auxiliar-nos: por exemplo, é evidente que se um quadro representa a Paixão de Jesus os seus flageladores são seguramente concebidos como feios. Não dispomos de garantias semelhantes nos casos oriundos de outras culturas.

PN: Admite que, no curso da história, o feio tem sido tão apaixonante para os artistas como o belo – ou até mais?

ECO: Ao colectar material visual ou literário para a minha antologia, fiquei com a sensação de que as representações das coisas belas seguiram sempre um certo cânone, deixando um espaço limitado para a imaginação do artista. Com o Feio, os artistas podem ser mais inventivos. Tente imaginar a descrição literária de uma mulher bela: depois de enaltecer os olhos, o perfil, os lábios ou os cabelos, resta muito pouco a acrescentar (excepto no caso em que o escritor não descreve simplesmente qualidades físicas, mas sugere uma espécie de misterioso glamour, ou um apelo impalpável). Pelo contrário, na representação do horrível e do repugnante a fantasia do artista pode ter rédea solta. A Beleza tem limites canónicos. A Fealdade é ilimitada nas suas possibilidades.

PN: Existem belas representações artísticas do Feio. Há uma diferença entre a Fealdade na arte e a Fealdade na natureza?

ECO: Devemos sempre distinguir entre ambas. Um mau artista pode fazer uma horrível representação de Vénus, assim como um grande artista pode representar Polifemo esplendidamente. Do mesmo modo, eu não convidaria uma mulher de Rubens para jantar, mas reconheço que do ponto de vista artístico elas são muito belas. Na história da arte há fascinantes representações ou criações de seres monstruosos – basta pensar em Hieronymus Bosch.

 

(Entrevista publicada no caderno Actual do semanário Expresso)

publicado por otransatlantico às 20:22
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CONCEITO E CONFEITO

 

 

 

Certo, a filosofia já se debruçou antes sobre o humor. Até mesmo para definir ontologicamente o ser humano. Aristóteles (cujo tratado sobre a comédia se perdeu, como Umberto Eco participou ao mundo) proclamou que o homem é o único animal que ri (negligenciando a hiena, que ri-se como Eddie Murphy). Mais até: no seu livro especificamente sobre o cómico – Le Rire -, Bergson observou que todo o humor tem uma conotação humana, caso contrário não tem graça. Uma paisagem pode ser bela ou soturna, nunca cómica.

Todavia, os filósofos não se celebrizaram propriamente por serem tipos impagáveis. Lembremos que num acesso de neura, Wittgenstein chegou a atirar um atiçador de lareira à cabeça do seu colega Karl Popper. E um Schopenhauer propôs que os homens parassem de procriar, de modo a que a insuportável humanidade se extinguisse.

Há histórias da filosofia ocasionalmente espirituosas, como a (esplêndida) História da Filosofia Ocidental, de Bertrand Russell. Mas Platão e um Ornitorrinco entram num bar vai muito mais longe: percorre os sistemas filosóficos através de anedotas que os exemplificam e elucidam. É uma ideia encantadora, sobretudo por que a esmagadora maioria das piadas são hilariantes – e de facto pedagógicas, ainda que de uma maneira derrisória para os respectivos pensadores.

É quase impossível escolher uma delas, tal a abundância e a graça. Mas, já que falei acima de Wittgenstein, selecciono uma sobre a filosofia da linguagem e a sua ambiguidade. Bill foi visitar o amigo Bob, que estava a morrer no hospital. À cabeceira do amigo, a saúde de Bob piorou e ele gesticulou freneticamente a pedir algo onde pudesse escrever. Bill deu-lhe uma caneta e um papel e Bob rabiscou algo. Mal acabou, morreu. Bill guardou o bilhete no bolso, incapaz de o ler naquele momento. Durante o velório, junto da pesarosa família de Bob, Bill apercebeu-se de que o bilhete estava no bolso do casaco e anunciou: “Bob entregou-me um bilhete mesmo antes de morrer. Ainda não o li, mas conhecendo-o como o conhecia, sei que serão palavras inspiradoras para todos nós.” E leu em voz alta: “ESTÁS A PISAR O MEU TUBO DE OXIGÉNIO!”

Espero que tenham apreciado. Se não, cito a epígrafe do livro, de Groucho Marx: “Estes são os meus princípios. Se não gostarem, tenho outros”.

 

(Texto publicado no caderno Actual do semanário Expresso)

publicado por otransatlantico às 20:11
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GAGAÍSMO

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Eu, na minha santa e senil ingenuidade, achava que a tal Lady Gaga cantava por causa do nome. Ou seja: nascera com uma deficiente fonética e, como muitos gagos, quando canta não gagueja. E por isso é que canta tanto. Qual quê! Li uma crónica do Ivan Lessa sobre a lambisgoia e fui espreitar o YouTube. Ela canta simplesmente porque aquilo é música para milhões de ouvidos, incluindo os dela (e, fisicamente, parece o fantasma de uma bruxa que caiu da vassoura). Na Grécia Antiga, o sábio Demóstenes era gago. Para vencer a deficiência, enchia a boca de pedrinhas e, à beira-mar, apostrofava o oceano. E assim venceu a gaguez. Mas aposto que, mesmo com a boca cheia de pedras e a vociferar contra Neptuno, era muito mais afinado que essa lady. Ó Gaga, posso pedir-te uma canção? O canto do cisne.

publicado por otransatlantico às 17:17
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Ricky Martin e o armário em hora de ponta

         oscar_wilde_02                

 

 

                             Recentemente, Ricky Martin deu um salto na corda bamba: afastando-se das gavetas e dos cabides, abandonou definitivamente o armário. O intérprete de “Livin’ la Vida Loca” postou um texto explosivo no seu site oficial: “Hoje aceito a minha homossexualidade como uma prenda que a vida me deu”. Para os mais atentos, esta bomba foi um quase um estalinho: o cantor nunca foi fotografado com namoradas e mantém em segredo de Estado o nome da mãe dos seus filhos (dois gémeos, desenvolvidos numa barriga de aluguer). Ainda assim, há um risco óbvio ao “assumir-se”, já que Ricky enfeitiçava as fãs com a sua aerodinâmica de amante latino, “caliente” como um macho alfa.

                        Consta que a música, o cinema e a TV estão entre as áreas profissionais mais abertas à diversidade, pelo menos hoje em dia. Tanto que um maestro há pouco tempo resmungou: “Tchaikovski pensou em matar-se por medo de ser desmascarado como homossexual. Mas agora, se um compositor clássico não for gay, convém meter desde já uma bala na cabeça”. A verdade, porém, é que o assunto é bem mais complexo, uma espécie de coexistência entre o 8 e os 80. Eis o dilema pragmático: para uma personalidade pública, vale a pena revelar a sua vida intimidade minoritária, ou é melhor varre-la para de baixo do tapete persa? OK: o sexo, desde que consensual e entre adultos, é uma questão privada. Mas, sem singelezas seráficas, há matizes em cada caso: para um profissional que sempre vendeu uma imagem de galã incandescente, o adeus ao armário pode chocar e desiludir milhares de fãs – que sempre sonharam, consciente ou inconscientemente, conquistar o ídolo, na acepção real da palavra. E a homossexualidade continua controversa, como atestam, por exemplo, as perseguições aos gays no Irão ou Cuba, ou a associação feita por um hierarca do Vaticano (que depois recuou) entre pedofilia e homossexualismo - ainda que Bento XVI, com clareza inédita, tenha reconhecido os actos pedófilos cometidos por representantes do clero como criminosos e puníveis pela Justiça secular.

                        A atitude de Ricky Martin desencadeou uma campanha nos EUA: “Give a Damn” (“Dane-se”): inúmeros artistas apareceram em vídeos a assumir ou a reforçar a sua opção sexual. Um deles foi Anna Paquin, a segunda actriz mais jovem da história a receber um Oscar (por “O Piano), quando tinha onze anos. Hoje com 28 e noiva do actor Stephen Moyer, ela professou-se bissexual. Outro a dar a cara foi T. R. Knight, um engatatão heterossexual na badalada série “Anatomia de Grey”. Já em 2006 ele enviara uma carta à revista “People”, assumindo a sua homossexualidade e alegando que assim pretendia acabar com “rumores desnecessários”. Aludia, nas entrelinhas, ao incidente com Isaiah Washington, colega de Knight na série, que chamou-o “bicha” – e por isso foi demitido. O próprio Knight abandonou o programa no ano passado, desapontado com o rumo da sua personagem.

                        Como às vezes acontece com as radicalizações, a campanha também gerou exageros. Elton John chegou a informar o mundo de que “Jesus Cristo era gay”. Só faltou acrescentar que foi por isso que Bach compôs “Jesus, Alegria dos Homens”. Certo, Dan Brown embolsou milhões a proclamar que Jesus terá casado com Maria Madalena e gerado filhos estigmatizados pela Igreja Católica – do que não há a mais ínfima evidência histórica. Mas pelo menos Brown não se cansa de repetir que o que escreveu é pura ficção e ponto final. Ignora-se a amplitude da erudição teológica de Elton John. Todavia, na sua condição humana, Jesus era um judeu religioso, seguindo escrupulosamente a lei fundamental deste povo: os dez mandamentos, entre os quais o sexto, que prega a castidade. A homossexualidade é condenada no Antigo Testamento, e o Novo, a partir do próprio Jesus, confirma tal desaprovação.

                        Claro que muitos dos grandes expoentes da história foram homossexuais praticantes. E depois? Não precisamos de corar. Mas é a tolice atribuir, sem nenhum fundamento científico, a homossexualidade a vultos proeminentes da crónica humana, para legitimar a opção pessoal de cada um. Daqui a bocado, até um Humprhey Bogart entrará na dança (ballet).

                        O próprio Shakespeare, de cuja vida não sabemos quase nada, já foi arrolado como um gay militante. Tudo por causa dos seus deslumbrantes “Sonetos”, 154 poemas divididos em duas partes, a primeira dirigida a um “belo rapaz” (fair youth) e a segunda a uma dama escura (dark lady). Como nota um biógrafo, “o facto extraordinário é que Shakespeare, criador das mais ternas e comoventes cenas de afecto heterossexual, peça após peça, com os sonetos foi convertido no poeta gay mais sublime da história da literatura”. Uma das poucas coisas que sabemos sobre Shakespeare é que ele foi casado com Anne Hataway e teve dois filhos - um deles chamado Hamnet, que morreu precocemente e é apontado como a matriz de Hamlet. Embora tenha deixado quase 1 milhão de palavras de texto, dispomos de só 14 palavras do seu próprio punho – ele nunca assinou sequer o seu nome da mesma maneira. Daí a tese de que Shakespeare não passava de um pseudónimo. O que não quer dizer que o autor de “Romeu e Julieta” NUNCA tenha bebido de outras águas. Quer dizer apenas que não sabemos e pronto.

                        Tão-pouco quer dizer que os escritores, por serem teoricamente mais cultivados (e menos mundanos), tenham gozado de maior liberdade. Já em meados do século XX a revista “Time” cancelou uma capa prontinha com o grande poeta W. H. Auden, quando o editor soube que ele era gay. Mesmo nos irreverentes anos 60, a “Time” torpedeou o dramaturgo homossexual Tennesse Williams, colando a cada uma das suas peças um selo indefectível: “Lamaçal fétido”.

                        Parece que a resposta ao tal dilema é um ambíguo e reticente “depende” – muito aleatório. O actor inglês Rupert Everett, por exemplo, fez um beicinho: “Desaconselho a qualquer dos meus colegas a saírem do armário”. Desde que assumiu-se como gay, Everett ficou limitado a papéis de… gays – ou de ingleses snobs. Até no desenho animado “Shrek 2” ele dobra um amaneirado e afectadíssimo príncipe. Ora, o ofício do actor consiste basicamente em fingir ser quem não é – mas ainda há resistências a ideia de um gay interpretar um heterossexual.

                        Mas realmente não existe um padrão. O idoso actor britânico Ian McKellen (“O Senhor dos Anéis”, “O Código Da Vinci”, etc), que tem o título de “Sir” – é par do reino, com uma brilhante carreira teatral -, acredita que nos EUA o preconceito é maior, por causa do alegado puritanismo americano. No entanto, se é certo que um Rock Hudson só saiu do armário quando estava velho e a morrer de sida (aids), hoje há numerosos casos opostos. Neil Patrick Harris, que “assumiu-se” em 2006, no ano passado apareceu na capa da revista “New York” a passar batom nos lábios (e não era contra o cieiro, mas escarlate fluorescente). E a carreira dele está em alta – até faz de garanhão na série “How I Met Your Mother”.

                        Ficar no armário comporta outro risco: escancararem a porta e ser apanhado lá dentro, numa posição comprometedora. Em 1998, o cantor George Michael foi detido em Los Angeles, depois de tentar fazer sexo oral numa casa de banho pública, com um polícia disfarçado (o que um agente da autoridade não faz para cumprir a lei!). Ele nunca tinha assumido e a sua imagem caiu a pique (claro que as drogas e estapafúrdias escolhas musicais também não ajudaram nada). Contudo, depois de regressar aos palcos dez anos mais tarde e lançar um novo CD, Michael facturou 150 milhões de dólares de 2006 a 2008, só com a digressão “25 Live”. Se calhar num acesso de amnésia colectiva, as fãs voltaram a babar-se por ele. Sim, é complicado decifrar a relação alquímica ídolos/idólatras. Ainda nos sisudos anos 50, o pianista americano Liberace era passionalmente adorado por uma legião de circunspectas matronas. Não obstante, ao pé do espalhafatoso visual dele, José Castelo Branco pareceria um John Wayne.

                        E para as mulheres – sair do armário é mais fácil ou mais difícil? Jodie Foster, que começou a carreira artística ainda criança, assumiu-se apenas em 2007. Foi numa gala em Hollywood. Ao recolher mais um prémio, Jodie agradeceu: “Devo-o à minha linda Cydney, que está comigo nos bons e maus momentos”. Ninguém ligou – mas Jodie tem um currículo inexpugnável: foi a primeira mulher a receber dois Óscares de melhor actriz antes dos 30 anos. E, afinal, talvez alguém tenha ligado: coincidência ou não, a longa relação dela com Cydney Bernard acabou pouco depois.

                        O que não impediu Cynthia Nixon – a Miranda de “O Sexo e a Cidade” – de aderir à actual campanha. Há mais de cinco anos, Cynthia (que foi casada com um cavalheiro que não vem ao caso e tem dois filhos) vive com Christine Marinoni. E elas pretendem dar o nó este ano.

                        Um dos episódios mais instrutivos é o de Ellen DeGeneres. A sua carreira quase descarrilou depois que ela saiu do armário, em 1997. Uma série que protagonizava foi imediatamente cancelada. Mas Ellen deu a volta por cima. Primeiro, como jurada do “American Idol”. Em seguida, apresentou a cerimónia do Oscar em 2007 – grande comediante, arrasou. Hoje, casada com a estonteante Portia de Rossi, comanda um dos talk shows mais vistos no mundo (em Portugal, é emitido pela SIC), significativamente intitulado apenas “Ellen”.

                        Seja como for, é evidente que já lá vão os tempos de um Oscar Wilde, um dos maiores epigramáticos da história da literatura. Escritor e dramaturgo, Wilde seguiu à risca um dos seus aforismos: “Devemos resistir a tudo – menos às tentações”. Com 1,90 metro de altura e uma língua que era uma navalha de ponta-e-mola, dava nas vistas na Inglaterra vitoriana. Talvez demasiado. Teve a sua primeira experiência homossexual já com 32 anos. Antes, fora noivo de uma jovem que o deixou para casar – imaginem! – com Bram Stoker, o futuro autor de “Drácula”. Wilde, provavelmente, assustava-a ainda mais. Depois, o escritor desposou Constance, que lhe deu dois filhos. O escândalo rebentou quando Wilde, nos píncaros da fama, apaixonou-se por um rapaz chamado Alfred Douglas, que não era flor que se cheirasse. Além disso, o pai de Alfred era o marquês de Queensberry, simplesmente o homem que sistematizou as regras do boxe. Que pontaria!

                        O marquês acusou publicamente Wilde de homossexual – e este, confiante na sua retórica aguçada, processou o acusador. Uma série de prostitutos desfilaram pelo tribunal, lavaram cada trapinho de roupa suja, e o escritor foi condenado a dois anos de prisão, com trabalhos forçados. Ao chegar à penitenciária, raparam-lhe a cabeça e cuspiram-lhe na cara. Quando cumpriu a pena, era um farrapo humano. Refugiou-se em Paris, onde às vezes interpelava os transeuntes na rua: “Sou Oscar Wilde e estou a pedir-lhe dinheiro!”. Agonizou num hotel parisiense que não passava de uma pocilga. Mesmo assim, não perdeu a graça. As suas últimas palavras: “Morro como vivi: acima das minhas posses”.

                        Moral desta história toda? Nas suas “Memórias”, o romancista Gore Vidal, gay assumido há séculos, observou: “Nos EUA, actualmente, qualquer homossexual consegue ficar famoso como escritor. Pois não basta ser bicha para escrever. Por incrível que pareça, é preciso talento também”. Este último item – o talento - devia ser o único critério para avaliar um artista – independentemente da sua opção sexual.

 

(Texto publicado na revista DN/JN Notícias)

publicado por otransatlantico às 16:59
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Uma folha de parra, sff

http://www.geos.ed.ac.uk/homes/s0456225/Tromso.jpg

 

TROMSO: OBSCENAMENTE LINDA

 

 

Dentro de dias, vou a Tromso (Noruega), 300 kms acima do Círculo Polar Árctico, ver a aurora boreal (se ela não der uma nega aos mirones, como às vezes acontece). Mais um avião, agora com as novas medidas anti-terror. Será que brutamontes irão apalpar-me as partes e exibir nos plasmas do aeroporto os meus países-baixos, em Alta Definição e 3-D? (Não, não é que eu tenha algo a esconder, ou pelo contrário!) Como disse B. Franklin, “quem deita fora a liberdade essencial para obter uma pequena segurança não merece nem liberdade nem segurança”. Mas a maioria de nós apoia o endurecimento (salvo seja) – afinal, para usufruir de direitos como a liberdade e a privacidade, é necessário estar vivo. O problema é o limite: onde o ónus excede o bónus? O “racial profiling” ofende o nosso senso de justiça. Há algo de execrável em suspeitar de milhões de cidadãos como criminosos só por causa de características étnicas. E, como mostrou o quase atentado no Natal passado e em Times Square mais recentemente, não há vigilância 100% infalível em 100% do tempo. Como observou Hobbes, “o mais fraco dos homens tem força bastante para matar o mais forte”. A partir de determinado nível de segurança, dependemos da sorte. E ninguém mais sortudo do que Tsutomu Yamaguchi, um japonês que morreu na semana passada, aos 93 anos. Ele sobreviveu à explosão da bomba atómica em Hiroxima, em 1945, voltou para a sua casa, em Nagasaki – e sobreviveu também à explosão nessa cidade, dois dias depois. Nas duas bombas, estava a menos de 1 km do epicentro da explosão, e sofreu apenas ruptura dos tímpanos. Dos 200 mil mortos nas duas cidades, milhares estavam mais longe do “marco zero” – e sucumbiram ao calor, intoxicação, desmoronamentos ou desenvolveram algum cancro. Yamaguchi gozou de tanta saúde pelos quase 60 anos seguintes que nunca participou de manifestações antinucleares – não se sentia com a legitimidade de quem foi “realmente atingido”. OK, mas eu, se fosse ele, tinha ao menos ido a correr jogar no Euromilhões.

 

(Texto publicado na revista Domingo, do Correio da Manhã)

publicado por otransatlantico às 16:54
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ENFIM, S.O.S.!

 

 

Primeiro e único aviso: oxalá não sejam monoglotas, pois este é um blogue bilíngue: aquecido no microondas e servido no português de Portugal e no do Brasil (às vezes separadamente, às vezes ao mesmo tempo, às vezes nogueiristicamente colado com cuspo). Estamos de acordo contra o acordo ortográfico. Porque mais um, se já há mais blogues do que leitores? Corre por aí um mito urbano segundo o qual já há mais blogues até do que telemóveis (celulares). Por causa, parafraseando o romance Transatlântico (nome do blog e minha condição - mil perdões, não se repetirá! - ontológica), do meu destino inédito, daquela coisa que bem ou mal, boa ou má, sou eu e mais ninguém, nem antes nem depois, nem agora nem nunca.

Como sei quase tudo sobre quase nada, falarei de muito, e de mais alguma coisa (livros, cinema, Megan Fox, séries de TV, música, Megan Fox, pintura, teatro, Megan Fox, futebol). Enfim, aquelas matérias que um homem do Renascimento considerava o pão nosso de cada dia (especialmente TV e Megan Fox). Falarei da vida antes, durante e depois da morte (para estes dois últimos temas aceito colaborações de correspondentes e enviados especiais). Só não falarei de apicultura e críquete, por motivos óbvios. Falarei de mulheres, apesar de - não obstante anos de pesquisa laboriosa, sofrida e sofrível- admitir que não entendo patavina do assunto. Porém, como nós também somos chineses para elas, estamos quites (em tempo: para as chinesas, nós somos gregos). Aliás, se calhar é precisamente por isso que gostamos uns dos outros (aqueles que gostam, claro) - devido à incompreensão perplexa e recíproca. É o único caso em que aceito o obscurantismo e, até, a média luz (o black-out não, pois gosto de ver os olhares, ainda que eventualmente de consternação).

De vez em quando, encherei o chouriço (ou a linguiça, em brasileiro) com textos que publiquei na imprensa. São os ossos do ofício, sempre duros de roer (e quase nunca me lembro donde os enterrei). Com uma pitada de sarcasmo para condimentar, serão os ossos do ofídio. Divirtam-se às minhas custas, até porque, infelizmente, não custa nada.

publicado por otransatlantico às 12:11
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