Terça-feira, 19 de Abril de 2011

“CONSIDEREI ESCREVER UM ROMANCE NO QUAL O EQUILIBRISTA CAÍSSE”

Deixa o Grande Mundo Girar venceu no ano passado o National Book Award, o principal prémio literário dos EUA. O autor é o irlandês Colum McCann, radicado em Nova Iorque, onde dá aulas numa faculdade. O eixo do romance evoca uma proeza histórica: na manhã de 7 de Agosto de 1974, o funâmbulo francês Phillipe Petit atravessou as Torres Gémeas (então ainda por inaugurar), caminhando sobre um cabo de aço a 110 andares de altura, quase meio quilómetro do chão. Petit desafiou várias leis, a começar pela da gravidade: correu, saltou e até dançou entre os mesmos prédios que, 27 anos depois, seriam destruídos pelos terroristas no 11 de Setembro. A corda bamba do equilibrista – hoje com 59 anos – ata um naipe de personagens inteiramente fictícios, mas convincentes e memoráveis. Colum McCann falou com exclusividade ao Expresso.

PAULO NOGUEIRA: Com o 11 de Setembro em mente, um equilibrista a dançar sobre abismo entre as Torres Gémeas é uma metáfora poderosa, emocionante e bela. E, simultaneamente, um fato verídico e inegável. Quando ocorreu-lhe a ideia, não se sentiu eufórico – quase abençoado – por nenhum outro romancista ter chegado primeiro? Certo, já havia dois livros sobre a façanha, mas de um gênero muito diferente: as próprias Memórias de Petit, e The Man Who Walked Between the Towers, a novela para crianças de Mordicai Gerstein, que ganhou em 2004 o Caldecott Award. Mas, no que diz respeito à ficção adulta, o ovo de Colombo era todo seu…

COLUM MCCANN: É verdade – foi empolgante “descobrir” tal imagem. Um daqueles momentos em que ficamos sem fôlego. Porém, foi também aterrorizante. Não estava nada seguro de como lidar com aquilo. No princípio (em 2002, e sobretudo em 2003, quando começou a invasão do Iraque), eu achava que gostaria de jogar com a ideia de história: pervertê-la, distorcê-la, arruiná-la, na medida em que tantas coisas estavam a ser aniquiladas no mundo naquela altura. Acredite se quiser: quis escrever uma história em que o equilibrista caísse... Claro que seria uma analogia política mas, quanto mais me afastava desta ideia, mais pueril ela me parecia. Ainda bem que não me aventurei por aí! Pelo contrário, as minhas reflexões amadureceram e comecei a pensar mais na justiça do que na vingança. E também sobre a regeneração. E assim, espero, o livro se tornou mais complexo e compassivo.

É importante realçar que não se trata de uma “ideia” original, no sentido em que Petit realizara a caminhada e já havia as obras que citou. Porém, concordo com a observação de John Berger, de que “nunca mais uma história será contada como se fosse a única.” E o meu romance não é realmente “sobre” a caminhada entre as Torres. Uso-a, mas não é o cerne da narrativa. Todos percorremos cordas bambas. Por vezes a meio quilómetro do solo, por vezes com os pés no chão…

 

E: A despeito da moldura de dois fatos históricos – a caminhada de Petit e o 11 de Setembro -, o seu romance parece mais interessado numa variedade de vozes e nas respectivas conexões, do que em descrições pormenorizadas no tempo e no espaço. Por outro lado, temos os dois lados da moeda nova-iorquina: Park Avenue e o Bronx…

CM: Tentei compor uma espécie de sinfonia verbal da cidade, usando todos os instrumentos e todas as vozes. Suponho que quis ouvir a música do sítio que amo. E assim perceber também que todas as vozes são necessárias. Estamos todos estreitamente ligados, às vezes para o bem, às vezes para o mal. Desde sempre escrevo sobre personagens à beira do abismo – portanto, não deixou de ser um alívio abordar igualmente os abastados, para criar um complexo mosaico humano.

E: O paralelismo elíptico entre a proeza de Petit e o 11/9 não é o único. A lutuosa Claire, por exemplo, podia ser o paradigma de qualquer mãe que perdeu o seu filho numa das guerras mais recentes da América. E há esta frase, que soa familiar: “As mentiras repetidas tornam-se história, mas não se tornam necessariamente verdade.”   

 

CM: Sim… Creio que foi Hegel quem disse que a história é um consenso sobre as mentiras. E suponho que eu estava consciente de que o Vietname pairava sobre o Iraque. Do mesmo modo que os piratas informáticos e os viciados em telemóveis refletem a ubiquidade da tecnologia nos dias de hoje. Eles experimentam a “caminhada” da mesma maneira que, actualmente, ficamos a saber de cada fato no momento em que ele acontece. Mas também há questões no romance sobre arte, fé e pertença, que são questões do quotidiano. Faulkner assinalou que a boa literatura é sobre “o coração humano em conflito consigo próprio.” E assim é em qualquer época e em todos os tempos.

 

E: O Colum nasceu na Irlanda, rodeado de uma formidável tradição literária. A Torre Martello (outra torre…), onde o Ulysses de Joyce começa, aparece duas vezes no seu romance, significativamente no início e no fim. 7 de Agosto de 1974 é o seu Bloomsday?

CM: Não: o Bloomsday é o meu Bloomsday (logo envio-lhe uma crónica em que falo disto). É completamente impossível existir outro que não o original…

E: Um crítico americano queixou-se da sua competência quanto à gíria dos nova-iorquinos, embora o Colum já viva e leccione em Nova Iorque há muitos anos…

CM: Estou perfeitamente preparado para admitir equívocos. É importante para um escritor ser humilde e enfrentar os seus erros. Aliás, reconheço que cometi alguns enganos no romance – mas não esse que o crítico apontou! Sinceramente! Submeti os meus diálogos a dezenas de nova-iorquinos de gema – de todos os estratos sociais -, e todos disseram que estava tudo irrepreensível. Empreguei o dialeto Afro-americano e pesquisei meticulosamente o calão dos anos 70. Ora, o crítico em causa queria eu escrevesse “pão torrado” em vez de “pão branco”, o que simplesmente não é mesma coisa…

E: Suponho que assistiu ao documentário de Phillipe Petit, Man on Wire. Em caso afirmativo, como se sentiu? Estou a pensar numa frase sua: “Uma foto é como um pequenino romance.”

CM: “Uma foto é como um pequenino romance.” É uma óptima frase! Onde é que eu disse isso, Paulo?! A sério: achei o documentário fabuloso. Também percebi que era muito diferente daquilo que pretendia fazer. Insisto: este é um mundo multifacetado, e cada história tem rostos diferentes sob uma luz diferente e de acordo com o operador de câmara…

E: Optou por não citar o nome de Petit no seu romance. Encontrou-o pessoalmente? Antes ou depois de escrever o livro?

CM: Encontrei-o pela primeira vez há muito pouco tempo, em Mântua, Itália. É um grande homem, bastante complexo e com imensa vida interior. Respeito-o e admiro-o como artista. Ainda não sei se ele gostou ou não do meu livro… Oxalá que sim, mas não é indispensável… Phillipe não está propriamente no romance, e sim uma espécie de sombra/avatar dele.

E: Nos agradecimentos no final do romance, o Colum diz: “A literatura pode recordar-nos de que a vida não está toda escrita – ainda existem inúmeras histórias para ser contadas.” E quanto à sua vida: é um homem e um escritor feliz?

CM: Excelente pergunta! Eu próprio às vezes faço-a aos meus colegas escritores. Sim, sou uma pessoa feliz. E quero ser um escritor feliz. Isto não significa que quero escrever apenas sobre a felicidade, claro. É difícil lançar a felicidade à página, a menos que as trevas também já lá estejam.

 

Despeço-me e penso - mas não digo, pois escreverei agora: o estilo deste irlandês - volta e meia elegíaco, porém sem nunca descambar no sentimental - adensa o livro e faz o intimismo transcender o épico balofo. Exemplo: ao adejar sobre o abismo entre as torres, Petit sente que aquilo “era como fazer amor com o vento.” Dificilmente, rumino, foi isso o que os terroristas sentiram a caminho da sua imolação assassina.                              

 

 

 

                                                                                             

 

PAULO NOGUEIRA

publicado por otransatlantico às 18:54
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