Domingo, 24 de Outubro de 2010

CLARO QUE ELE ADORA PITBULLS

 

 

 

Antes de Dashiell Hammett publicar O Falcão de Malta em 1930, o assassino dos romances policiais podia não ser o mordomo, mas este era sempre suspeito. A vítima era uma oficial reformado da Marinha britânica ou algo assim, simpático e gagá. E o detective era um snob que fumava cachimbo, jogava xadrez ou cultivava begónias. O crime ocorria numa cotagge, geralmente na biblioteca, e o criminoso, ao escapulir pela janela, espezinhava os arbustos e imprimia pegadas na relva com tal veemência que até o inspector Closeau seria capaz de segui-las – porque o assassino usava uma perna de pau e, no outro pé, um sapato número 48. O detective disfarçava-se de fumador de ópio e se embrenhava nos antros de Londres para achar a pessoa que, como a Cinderela, correspondesse àquela descrição.

Exagero, claro. O romance policial clássico que os ingleses produziram entre 1880 e 1930 inclui obras notáveis. Mas Hammet injectou realidade no género (o crime não era um hobby, mas uma profissão, e era praticado por uma razão concreta, ainda que passional, e não para alternar com uma partida de bridge). Depois vieram Raymond Chandler (o Proust do policial), Elmore Leonard e James Ellroy. Sou um leitor omnívoro (dos poetas metafísicos do século XVII aos metafísicos alemães propriamente ditos) – mas admito que tenho um forte fraquinho pelo thriller. Por isso calculem a minha alegria ao entrevistar, pessoalmente, James Ellroy. Infelizmente, vi logo que o prazer não era recíproco.

O escritor tem 63 anos, mas aparenta mais. É esguio e elegante, quase janota, como um Tom Wolfe amarfanhado. Exalava crispação por todos os poros. Adicionei a diplomacia à verdade ao proclamar-me “um grande fã. É uma honra conhecê-lo”. Ele reagiu como se eu tivesse dito que estava a chover ou que eram três da tarde. Sentámo-nos e liguei o gravador, que Ellroy fitou como se fosse uma substância saída de algum intestino.

Achei aconselhável começar por um ângulo ameno, para desanuviar. “Sei que, há muito tempo, trabalhou como caddy…” Ele grunhiu, efusivamente: “Sim”. Perseverei: “Aprendeu a jogar golfe? Aprecia algum desporto?”. “Não.” Era evidente que a negativa abrangia as duas perguntas (e muitas das próximas), e que ele considerava uma entrevista uma modalidade de desporto.

Bem, era óbvio que o meu interlocutor estava a evoluir de descontente para furioso. Examinei-me de esguelha: teria a braguilha aberta? Uma coisa verde nos dentes? Nada. A minha intenção ao invocar o biscate do golfe era pô-lo a falar sobre a sua “estação no Inferno”: na adolescência, a mãe dele foi assassinada, expulsaram-no da escola e de casa, dormiu em parques e sob viadutos, pilhou lojas de conveniência, invadiu lares para surrupiar cuecas femininas, tornou-se alcoólico. Depois veio a literatura, a sublimação, a redenção: tinha 30 anos quando publicou o primeiro livro. Era aí que eu queria chegar. Tudo bem. Bastava de questiúnculas.

“Intitulou quatro dos seus romances O Quarteto de Los Angeles, culminando no White Jazz, que acaba de sair em Portugal. Inúmeras das suas obras se desenrolam na mesma cidade. Porém, se não me engano, hoje vive em Kansas City. Agora concorda com Chandler, segundo o qual ‘L.A. tem tanta personalidade como um copo de papel?’” Ele fez um esgar de nojo. “Está enganado. É a segunda vez em duas perguntas. Moro em Kansas City, mas ainda resido em Los Angeles. E Chandler era um péssimo escritor. Não percebia patavina de policiais”.

Engoli em seco. Agora Ellroy já não falava: rangia os dentes audivelmente. Comecei a ter saudades dos eloquentes monossílabos. Mas sou um profissional: “Por causa da sua prosa pessimista, já foi chamado o Demon Dog do policial americano. Mas alguns dos seus protagonistas – o tenente Klein, por exemplo – têm a sua própria e visionária moralidade…” Pronto, eu preparara o terreno para Ellroy pontificar como um Péricles contemporâneo. Ele catapultou-se da cadeira com uma expressão de indignação cósmica, como se eu tivesse jurado sobre a Bíblia que 1 + 1 = 3. “Criei Klein há 20 anos! Não me interessa peva!”. Imaginei Shakespeare a vociferar para um repórter isabelino: “Que se lixem Macbeth ou Hamlet. Só falo sobre Próspero!”.

Esbocei um sorriso amarelo. “É visto como um conservador. Mas opôs-se à pena de morte e defendeu a restrição à venda de armas…” Olhou-me profunda e sugestivamente nos olhos: “Sou a favor da pena de morte. Certas pessoas não merecem viver.”. Desatei a divagar com um derradeiro e lancinante recurso ao Governador do Estado. Ellroy acrescentou: “Mas é verdade que aprovo o controlo do comércio de armamentos”. Animado, tentei estabelecer uma cumplicidade melíflua: “Eis um mistério que gostava que me ajudasse a solucionar. Vários dos melhores escritores policiais são mulheres. No entanto, as estatísticas indicam que poucas leitoras gostam de thrillers. Tem uma pista?” “É verdade que há boas autoras de policiais. Não faço a mínima ideia porque as mulheres não simpatizam com o género”. Olhou para o relógio. Só faltou sacudi-lo. Para continuar no âmbito criminal, a cara dele agora lembrava a de Al Capone com a mãe de todas as enxaquecas.

E se lhe desse uma oportunidade de desancar nos contemporâneos? Afinal, Ellroy não se cansa de repetir que não lê os colegas, “para não ser influenciado” (apesar de ser mais compreensivo com as gerações anteriores: “Sou como Tolstoi para o romance russo e Beethoven para a música”). Adiante: “Nos últimos tempos, o policial foi reduzido a duas vertentes: a dos serial killers, e a da antropologia forense, com computadores e análises de DNA…” Ele revirou os olhos. “Eu já escrevia sobre essas coisas há séculos”.

OK, então algo que ele também escreveu e que é o seu monograma. “Parece preferir as forças policiais institucionais aos detectives particulares….” “Claro. Os investigadores privados não percebem nada do assunto. São amadores.” Hum. Lembrei-me de que ninguém leva a mal um elogio. “Diversas obras suas foram adaptadas para o cinema. L. A. Confidencial foi nomeado para nove Óscares e ganhou dois. Como se sente ao ver os produtos da sua imaginação projectados no ecrã?”. “É só uma forma de ganhar dinheiro”.

Pronto, então vamos para A Tempestade (afinal, eu já estava sob uma tormenta desde o início). “O seu novo romance, Blood’s a Rover, conclui a trilogia Underworld USA (será editado cá em Outubro). O livro reconstitui factos históricos, e apresenta personalidades célebres, como Howard Hughes e J. Edgar Hoover. Será correcto afirmar que se trata menos de uma obra policial que de ficção histórica?”. “Sim”

Sim? Ele disse “sim”? Achei melhor parar por ali e desliguei o gravador. Pela primeira vez, Ellroy não apenas concordou comigo como pareceu tolerar o facto de eu respirar (ou arfar). Despedi-me a pensar que, apesar da empatia e compaixão que os seus livros contêm, ele é o escritor mais antipático que já conheci. E olhem que a concorrência é renhida.

 

Ora, outro dia, Elrroy deu uma entrevista à sua própria namorada, a também escritora

 

Erika Schickel (aliás, bem mais jovem, simpática e bonita do que ele- uns com tanto, e outros com tão pouco!). Reparem como o Demónio da Tasmânia tratou-a. Não é defeito, é feitio. O pretexto da conversa é mais uma obra sobre a mãe do escritor, cujo assassino nunca foi apanhado.

 


 


publicado por otransatlantico às 17:58
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