Sábado, 5 de Junho de 2010

Ricky Martin e o armário em hora de ponta

         oscar_wilde_02                

 

 

                             Recentemente, Ricky Martin deu um salto na corda bamba: afastando-se das gavetas e dos cabides, abandonou definitivamente o armário. O intérprete de “Livin’ la Vida Loca” postou um texto explosivo no seu site oficial: “Hoje aceito a minha homossexualidade como uma prenda que a vida me deu”. Para os mais atentos, esta bomba foi um quase um estalinho: o cantor nunca foi fotografado com namoradas e mantém em segredo de Estado o nome da mãe dos seus filhos (dois gémeos, desenvolvidos numa barriga de aluguer). Ainda assim, há um risco óbvio ao “assumir-se”, já que Ricky enfeitiçava as fãs com a sua aerodinâmica de amante latino, “caliente” como um macho alfa.

                        Consta que a música, o cinema e a TV estão entre as áreas profissionais mais abertas à diversidade, pelo menos hoje em dia. Tanto que um maestro há pouco tempo resmungou: “Tchaikovski pensou em matar-se por medo de ser desmascarado como homossexual. Mas agora, se um compositor clássico não for gay, convém meter desde já uma bala na cabeça”. A verdade, porém, é que o assunto é bem mais complexo, uma espécie de coexistência entre o 8 e os 80. Eis o dilema pragmático: para uma personalidade pública, vale a pena revelar a sua vida intimidade minoritária, ou é melhor varre-la para de baixo do tapete persa? OK: o sexo, desde que consensual e entre adultos, é uma questão privada. Mas, sem singelezas seráficas, há matizes em cada caso: para um profissional que sempre vendeu uma imagem de galã incandescente, o adeus ao armário pode chocar e desiludir milhares de fãs – que sempre sonharam, consciente ou inconscientemente, conquistar o ídolo, na acepção real da palavra. E a homossexualidade continua controversa, como atestam, por exemplo, as perseguições aos gays no Irão ou Cuba, ou a associação feita por um hierarca do Vaticano (que depois recuou) entre pedofilia e homossexualismo - ainda que Bento XVI, com clareza inédita, tenha reconhecido os actos pedófilos cometidos por representantes do clero como criminosos e puníveis pela Justiça secular.

                        A atitude de Ricky Martin desencadeou uma campanha nos EUA: “Give a Damn” (“Dane-se”): inúmeros artistas apareceram em vídeos a assumir ou a reforçar a sua opção sexual. Um deles foi Anna Paquin, a segunda actriz mais jovem da história a receber um Oscar (por “O Piano), quando tinha onze anos. Hoje com 28 e noiva do actor Stephen Moyer, ela professou-se bissexual. Outro a dar a cara foi T. R. Knight, um engatatão heterossexual na badalada série “Anatomia de Grey”. Já em 2006 ele enviara uma carta à revista “People”, assumindo a sua homossexualidade e alegando que assim pretendia acabar com “rumores desnecessários”. Aludia, nas entrelinhas, ao incidente com Isaiah Washington, colega de Knight na série, que chamou-o “bicha” – e por isso foi demitido. O próprio Knight abandonou o programa no ano passado, desapontado com o rumo da sua personagem.

                        Como às vezes acontece com as radicalizações, a campanha também gerou exageros. Elton John chegou a informar o mundo de que “Jesus Cristo era gay”. Só faltou acrescentar que foi por isso que Bach compôs “Jesus, Alegria dos Homens”. Certo, Dan Brown embolsou milhões a proclamar que Jesus terá casado com Maria Madalena e gerado filhos estigmatizados pela Igreja Católica – do que não há a mais ínfima evidência histórica. Mas pelo menos Brown não se cansa de repetir que o que escreveu é pura ficção e ponto final. Ignora-se a amplitude da erudição teológica de Elton John. Todavia, na sua condição humana, Jesus era um judeu religioso, seguindo escrupulosamente a lei fundamental deste povo: os dez mandamentos, entre os quais o sexto, que prega a castidade. A homossexualidade é condenada no Antigo Testamento, e o Novo, a partir do próprio Jesus, confirma tal desaprovação.

                        Claro que muitos dos grandes expoentes da história foram homossexuais praticantes. E depois? Não precisamos de corar. Mas é a tolice atribuir, sem nenhum fundamento científico, a homossexualidade a vultos proeminentes da crónica humana, para legitimar a opção pessoal de cada um. Daqui a bocado, até um Humprhey Bogart entrará na dança (ballet).

                        O próprio Shakespeare, de cuja vida não sabemos quase nada, já foi arrolado como um gay militante. Tudo por causa dos seus deslumbrantes “Sonetos”, 154 poemas divididos em duas partes, a primeira dirigida a um “belo rapaz” (fair youth) e a segunda a uma dama escura (dark lady). Como nota um biógrafo, “o facto extraordinário é que Shakespeare, criador das mais ternas e comoventes cenas de afecto heterossexual, peça após peça, com os sonetos foi convertido no poeta gay mais sublime da história da literatura”. Uma das poucas coisas que sabemos sobre Shakespeare é que ele foi casado com Anne Hataway e teve dois filhos - um deles chamado Hamnet, que morreu precocemente e é apontado como a matriz de Hamlet. Embora tenha deixado quase 1 milhão de palavras de texto, dispomos de só 14 palavras do seu próprio punho – ele nunca assinou sequer o seu nome da mesma maneira. Daí a tese de que Shakespeare não passava de um pseudónimo. O que não quer dizer que o autor de “Romeu e Julieta” NUNCA tenha bebido de outras águas. Quer dizer apenas que não sabemos e pronto.

                        Tão-pouco quer dizer que os escritores, por serem teoricamente mais cultivados (e menos mundanos), tenham gozado de maior liberdade. Já em meados do século XX a revista “Time” cancelou uma capa prontinha com o grande poeta W. H. Auden, quando o editor soube que ele era gay. Mesmo nos irreverentes anos 60, a “Time” torpedeou o dramaturgo homossexual Tennesse Williams, colando a cada uma das suas peças um selo indefectível: “Lamaçal fétido”.

                        Parece que a resposta ao tal dilema é um ambíguo e reticente “depende” – muito aleatório. O actor inglês Rupert Everett, por exemplo, fez um beicinho: “Desaconselho a qualquer dos meus colegas a saírem do armário”. Desde que assumiu-se como gay, Everett ficou limitado a papéis de… gays – ou de ingleses snobs. Até no desenho animado “Shrek 2” ele dobra um amaneirado e afectadíssimo príncipe. Ora, o ofício do actor consiste basicamente em fingir ser quem não é – mas ainda há resistências a ideia de um gay interpretar um heterossexual.

                        Mas realmente não existe um padrão. O idoso actor britânico Ian McKellen (“O Senhor dos Anéis”, “O Código Da Vinci”, etc), que tem o título de “Sir” – é par do reino, com uma brilhante carreira teatral -, acredita que nos EUA o preconceito é maior, por causa do alegado puritanismo americano. No entanto, se é certo que um Rock Hudson só saiu do armário quando estava velho e a morrer de sida (aids), hoje há numerosos casos opostos. Neil Patrick Harris, que “assumiu-se” em 2006, no ano passado apareceu na capa da revista “New York” a passar batom nos lábios (e não era contra o cieiro, mas escarlate fluorescente). E a carreira dele está em alta – até faz de garanhão na série “How I Met Your Mother”.

                        Ficar no armário comporta outro risco: escancararem a porta e ser apanhado lá dentro, numa posição comprometedora. Em 1998, o cantor George Michael foi detido em Los Angeles, depois de tentar fazer sexo oral numa casa de banho pública, com um polícia disfarçado (o que um agente da autoridade não faz para cumprir a lei!). Ele nunca tinha assumido e a sua imagem caiu a pique (claro que as drogas e estapafúrdias escolhas musicais também não ajudaram nada). Contudo, depois de regressar aos palcos dez anos mais tarde e lançar um novo CD, Michael facturou 150 milhões de dólares de 2006 a 2008, só com a digressão “25 Live”. Se calhar num acesso de amnésia colectiva, as fãs voltaram a babar-se por ele. Sim, é complicado decifrar a relação alquímica ídolos/idólatras. Ainda nos sisudos anos 50, o pianista americano Liberace era passionalmente adorado por uma legião de circunspectas matronas. Não obstante, ao pé do espalhafatoso visual dele, José Castelo Branco pareceria um John Wayne.

                        E para as mulheres – sair do armário é mais fácil ou mais difícil? Jodie Foster, que começou a carreira artística ainda criança, assumiu-se apenas em 2007. Foi numa gala em Hollywood. Ao recolher mais um prémio, Jodie agradeceu: “Devo-o à minha linda Cydney, que está comigo nos bons e maus momentos”. Ninguém ligou – mas Jodie tem um currículo inexpugnável: foi a primeira mulher a receber dois Óscares de melhor actriz antes dos 30 anos. E, afinal, talvez alguém tenha ligado: coincidência ou não, a longa relação dela com Cydney Bernard acabou pouco depois.

                        O que não impediu Cynthia Nixon – a Miranda de “O Sexo e a Cidade” – de aderir à actual campanha. Há mais de cinco anos, Cynthia (que foi casada com um cavalheiro que não vem ao caso e tem dois filhos) vive com Christine Marinoni. E elas pretendem dar o nó este ano.

                        Um dos episódios mais instrutivos é o de Ellen DeGeneres. A sua carreira quase descarrilou depois que ela saiu do armário, em 1997. Uma série que protagonizava foi imediatamente cancelada. Mas Ellen deu a volta por cima. Primeiro, como jurada do “American Idol”. Em seguida, apresentou a cerimónia do Oscar em 2007 – grande comediante, arrasou. Hoje, casada com a estonteante Portia de Rossi, comanda um dos talk shows mais vistos no mundo (em Portugal, é emitido pela SIC), significativamente intitulado apenas “Ellen”.

                        Seja como for, é evidente que já lá vão os tempos de um Oscar Wilde, um dos maiores epigramáticos da história da literatura. Escritor e dramaturgo, Wilde seguiu à risca um dos seus aforismos: “Devemos resistir a tudo – menos às tentações”. Com 1,90 metro de altura e uma língua que era uma navalha de ponta-e-mola, dava nas vistas na Inglaterra vitoriana. Talvez demasiado. Teve a sua primeira experiência homossexual já com 32 anos. Antes, fora noivo de uma jovem que o deixou para casar – imaginem! – com Bram Stoker, o futuro autor de “Drácula”. Wilde, provavelmente, assustava-a ainda mais. Depois, o escritor desposou Constance, que lhe deu dois filhos. O escândalo rebentou quando Wilde, nos píncaros da fama, apaixonou-se por um rapaz chamado Alfred Douglas, que não era flor que se cheirasse. Além disso, o pai de Alfred era o marquês de Queensberry, simplesmente o homem que sistematizou as regras do boxe. Que pontaria!

                        O marquês acusou publicamente Wilde de homossexual – e este, confiante na sua retórica aguçada, processou o acusador. Uma série de prostitutos desfilaram pelo tribunal, lavaram cada trapinho de roupa suja, e o escritor foi condenado a dois anos de prisão, com trabalhos forçados. Ao chegar à penitenciária, raparam-lhe a cabeça e cuspiram-lhe na cara. Quando cumpriu a pena, era um farrapo humano. Refugiou-se em Paris, onde às vezes interpelava os transeuntes na rua: “Sou Oscar Wilde e estou a pedir-lhe dinheiro!”. Agonizou num hotel parisiense que não passava de uma pocilga. Mesmo assim, não perdeu a graça. As suas últimas palavras: “Morro como vivi: acima das minhas posses”.

                        Moral desta história toda? Nas suas “Memórias”, o romancista Gore Vidal, gay assumido há séculos, observou: “Nos EUA, actualmente, qualquer homossexual consegue ficar famoso como escritor. Pois não basta ser bicha para escrever. Por incrível que pareça, é preciso talento também”. Este último item – o talento - devia ser o único critério para avaliar um artista – independentemente da sua opção sexual.

 

(Texto publicado na revista DN/JN Notícias)

publicado por otransatlantico às 16:59
link do post | favorito
Comentar:
De
( )Anónimo- este blog não permite a publicação de comentários anónimos.
(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 


.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Setembro 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
30

.posts recentes

. ...

. E AGORA, COM VOCÊS, HITLE...

. “CONSIDEREI ESCREVER UM R...

. CLARO QUE ELE ADORA PITBU...

. PASSAGEM PARA A ÍNDIA

. O MESTRE MAGISTRAL

. MACACO É A SUA AVÓ!

. A MENSAGEM NUMA GARRAFA

. ALTA COSTURA E ALTA CULTU...

. AGENTE FINO É OUTRA COISA

. TREVAS AO MEIO-DIA

. ALICE NO PAÍS DAS MARAVIL...

. O TABACO SALVA!

. PINTAR O INSTANTE

. LEVANTADO DO CHÃO

. VAN GOGH PINTAVA O CANECO

. FAMA E INFÂMIA

. CASAIS DE ESCRITORES: PAL...

. O DONO DA VOZ

. LIVROS? DEUS ME LIVRE! 1 ...

. CHURCHILL E OS CHARUTOS

. O IMPACIENTE INGLÊS

. ENTREVISTA JAVIER CERCAS

. OSLO QUEBRA O GELO

. O APOLO DIONISÍACO

. O PAI DO SNOOPY

. O CACHIMBO PENSANTE

. ÇA VA?

. TRÊS ALEGRES TIGRES

. O ARCANJO OBSCENO

. RESORT 1 ESTRELA (NO PEIT...

. JACQUES, LE FATALISTE

. HITLER, MEU AMORZINHO

. O ETERNO RETORNO DO ETERN...

. ENTREVISTA: ALI SMITH

. O BARDO DO FARDO E O TROV...

. A MÚSICA DAS ESFERAS IV

. ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA D...

. SEXO E OUTRAS COISAS EMBA...

. ALI E ALÁ

. VIVA LA MUERTE?

. O BELO MALDITO

. REPERCUSSÃO DESTE BLOG!

. DEBAIXO DO VULCÃO

. PUSHKIN, O EMBAIXADOR E E...

. A ÚLTIMA CEIA DO MODERNIS...

. MAILER, VIDAL, CAVETT

. O REI DESTA SELVA VAI NU

. QUEM TEM K SEMPRE ESCAPA

. ENTREVISTA UMBERTO ECO

.arquivos

. Setembro 2011

. Abril 2011

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

.tags

. todas as tags

.links

.subscrever feeds