Domingo, 24 de Outubro de 2010

PASSAGEM PARA A ÍNDIA

 

 

Em novembro, Arundhati Roy completará 50 anos. Em que circunstâncias? Até 1996, data da publicação do romance O Deus das Pequenas Coisas, era uma ilustre desconhecida. A partir daí virou uma das escritoras mais badaladas do mundo, xodó da crítica e dos leitores globais. Mais tarde, porém, deu uma banana para a literatura, a fim de se embrenhar no ativismo político apartidário, 25 horas por dia, metendo o bedelho numa gama fervilhante de assuntos, sempre ruidosamente e sempre gerando crispação, adesão e polêmica.

Roy vive numa cobertura em Nova Delhi, a capital da Índia. O pai dela tinha uma plantação de chá e a mãe era uma feminista empenhada. Ao conhecer o seu segundo marido (o primeiro não vem ao caso), o cineasta Pradip Krishen, Roy se envolveu com o mundo do audiovisual. Interpretou até o papel de uma camponesa num filme de Krishen. Como não queria depender dele, exerceu vários bicos, incluindo dar aulas de aeróbica num spa de luxo (jovem, ela era de parar o trânsito – o que, nos perpétuos engarrafamentos de Nova Delhi, não é difícil). E começou a escrever roteiros para o cinema e a TV.

Arundhati é uma crítica feroz de Bollywood, a indústria cinematográfica indiana, que chegou a ultrapassar Hollywood em venda de ingressos. Deplora a dimensão folclórica das produções locais, geralmente dramalhões regados à música delicodoce e… culinária. Para não falar no proverbial patriarcalismo. Roy saudou o recente Khap – A story of honour killing, de Ajai Sinha. O filme narra o dilema de um hierarca tentado a mudar as suas convicções sexistas por amor à sua neta. Suscitou uma celeuma ensurdecedora. “Estava na cara!”, diz Roy, dando uma palmada na coxa. “É natural que as pessoas se escandalizem. Mas o importante é que reflitam sobre o filme.”

O lançamento de O Deus das Pequenas Coisas, que conjuga reminiscências da infância da autora no campo com a história da esquerda na Índia – tudo banhado num exotismo lírico e comedido – entronizou Roy como ficcionista de renome planetário. O romance embolsou o Booker Prize de 1997 e entrou na lista dos melhores do ano do New York Yimes. O sucesso comercial não foi menos atronômico: só de adiantamento, a escritora recebeu 1 milhão de dólares. Editado na Índia em maio, no final de junho o livro já tinha sido vendido para 18 países. Na Grã-Bretanha o entusiasmo foi mais matizado, apesar do Booker Prize. Um dos jurados do prêmio chegou a grunhir que a obra era “execrável”.

Por volta de 2001, Arundhaty deu uma guinada. Os atentados dos extremistas muçulmanos nos EUA e a retaliação americana provocaram nela uma epifania intelectual, uma espécie de “contra-catarse”. Mais ou menos como a operada no ensaísta Christopher Hitchens, que de guru de uma certa esquerda cosmopolita e literária formulou o conceito de islamo-fascismo e defendeu as invasões do Afeganistão e do Iraque. Roy foi no sentido oposto.

Para compreender a renúncia dela à literatura e a opção pela militância, convém olhar para a Índia. Houve uma época em que alguns economistas, para definir o Brasil, falavam numa “Belíndia” – com tantos contrastes, o País seria uma mistura de Bélgica com Índia. Ora, hoje a própria Índia é uma Belíndia… A terra de Gandhi, Tagore e Ray é agora um dos BRIC (ao lado dos outros emergentes: Brasil, Rússia e China), Bangalore consiste no seu Silicon Valley. Entra ano, sai ano, cientistas indianos açambarcam prêmios Nobel de Física, de Química, da Medicina, o escambau.

Porém, quem percorre as ruas de Nova Delhi (ou de qualquer cidade do subcontinente) fica embasbacado com indescritível miséria, imundície e degradação urbanística. Perto de Nova Delhi, a Rocinha é Mônaco. Trata-se de um país-pária, uma nação-intocável. Milhares de prédios são habitados com a construção interrompida e gangrenada, verdadeiros abortos arquitetônicos. Vacas (e um eventual elefante) competem no tráfego das principais avenidas com os tuck-tuck (versões atuais dos riquixós, puxados ou por ciclistas ou motociclistas) e ônibus caindo aos pedaços. As calçadas são canteiros de lixo gorgolejante e dormir em plena rua constitui um hábito corriqueiro não apenas dos sem-teto, mas de qualquer um que esteja fora de casa, esperando um transporte que só vem amanhã (se vier). A ONU calcula que 55 por cento (638 milhões) da população da Índia defecam ao ar livre. E são numerosos os mictórios escancarados (sem tetos nem portas, uma parede com um buraco), utilizados só pelos homens. As mulheres provavelmente contam até mil.

As razões para esta sordidez dantesca são várias, mas três se destacam: a demografia (o formigueiro indiano tem 1,2 bilhão de habitantes), os anacronismos religiosos como a questão das castas e a corrupção quase molecular (a evasão fiscal é alucinante). E é devido a disparidade entre uma nação moderna e até digital por um lado, e por outro pavorosamente injusta e desigual que Roy renunciou às palavras ordenadas para se dedicar às palavras de ordem. Décadas antes, Gandhi fez algo parecido – só que a resistência da escritora nada tem de “passiva”. É mais tipo boca no trombone e botar pra quebrar.

Roy vive em um singelo prédio de quatro andares num recanto discreto de Nova Delhi – um plácido atol no meio de um colossal Triângulo das Bermudas. Não se trata, claro, daquelas mastodônticas torres/fortalezas em que os bilionários indianos se barricam nos seus condomínios fechados, patrulhados por exércitos privados que davam para pacificar o Iraque e o Afeganistão com um pé nas costas (e o Paquistão de lambuja).

A escritora mora no último andar. Atravessamos a sala, decorada com simplicidade, cartazes de filmes e estatuetas orientais, cortinas em tons pastéis quase translúcidas, para conferir uma sensação de ventilação e arejamento. Ainda assim, vindo esturricado da rua, ao ver o aparelho de ar condicionado tive de me refrear para não montar cavalinho nele. Não havia mais ninguém, nem o marido (a não ser nas molduras), nem sons de outra presença humana – reinava um silêncio de abadia. Roy guia-me até ao terraço no telhado, onde há floreiras com flores estóicas, uma gaiola com um periquito dorminhoco, mesa e cadeiras de vime e um toldo puído. “Só se aguenta estar aqui no final da tarde”, explica ela, fitando o meu rosto afogueado. “Desde que passemos repelente de insetos, naturalmente”. Até aí, tudo bem: eu tinha me lambuzado com repelente que dava para afugentar uma praga bíblica de gafanhotos. Enquanto me atrapalhava com o gravador, Roy pediu licença por um minuto e se ausentou.

Uma das primeiras campanhas dela foi contra a construção da barragem de Narmada. Soa contraproducente, pois uma das maiores carências da Índia é o saneamento básico (o Ganges é a cloaca onde grande parte do país ainda se banha e lança os seus mortos, para não falar nos animais em decomposição e no lixo industrial). Mas Roy alega que “a represa é uma falsa solução: deslocará meio milhão de pessoas, e não suprirá nem irrigação nem água potável “. Por causa dos seus protestos, Arundathy foi processada pelo Estado. No tribunal, aproveitou que estava com a mão na massa: denunciou a corrupção nos concursos públicos para a construção da obra. Recusou-se a pedir desculpas e foi condenada a um dia de prisão e a uma multa de 2500 rupias.

Regressou minutos depois, com um bandeja, duas xícaras e um bule. “Quer chá?” Querer, não queria, pois era quente como lava. Reconheci o massala chai, o chá que todos os indianos consomem, independentemente da classe social – uma espécie de sandálias havaianas da Índia. Até agora eu tinha conseguido escapar. Bem, beco sem saída. O gosto até é bom, com umas gotinhas de leite e especiarias que não identifiquei. “Sabia que foi uma portuguesa que introduziu o chá na Inglaterra?”, perguntou Arundathy, enquanto eu soprava furtivamente para a xícara. Fingi que não sabia. “Foi Catarina de Bragança, a princesa lusa que casou com Carlos II. Aliás, ela ensinou também os ingleses a comerem com garfo e faca.” Sempre que ouço essa história, rumino: “Pena que não levou também umas receitas culinárias para a Inglaterra. Bacalhoada, por exemplo.”

Mesmo os que reconhecem a coragem de Roy acham que ela às vezes, bem, surta. Exagera e simplifica. Com uma gargalhada sarcástica, a própria concorda: “Sou histérica! Grito por causa do sangue que pinga dos telhados. Há quem reclame: ‘Psiu! Você vai acordar a vizinhança!’ Ora, eu quero acordar a vizinhança inteira! Quero que todo mundo abra os olhos.”

Quanto à escrita, não é que Arundhaty tenha trancado o seu laptop num sarcófago – apenas a ficção. Ela não só equipara moralmente os atentados do 11 de Setembro à Guerra ao Terror como – recordando as palavras de Adorno sobre fazer poesia depois de Auschwitz - exclama, ao seu estilo elegíaco e veemente: “Será outra vez possível apreciar o lento e perplexo pestanejar ao sol de um lagarto recém-nascido, ou responder ao ronronar de um gato no nosso ouvido – sem pensar nas Torres Gêmeas ou no Afeganistão?”

Os livros de ensaios panfletários proliferam: antiglobalização, contra o que intitula “neo-imperialismo americano”, contra a “nuclearização indiana” (em 2006, a administração Bush assinou um controverso acordo nuclear com a Índia). O argumento de que o vizinho e hostil Paquistão tem a bomba não a convence: “Atacar o Paquistão implicaria espalhar ainda mais o terrorismo e precipitar toda a região no caos”.

Volta e meia Roy é criticada pelos seus pares mais proeminentes. Depois dos atentados terroristas contra hotéis de Mumbai, em 2008, observou que estes não podiam ser encarados isoladamente, mas num contexto histórico mais amplo, como a pobreza generalizada, “o último pontapé do colonialismo britânico”. Salman Rushdie ridicularizou o elo que Roy vê entre o extremismo e uma discriminação contra os muçulmanos (a Índia ainda é o país com maior população islâmica, depois da Indonésia). Após Roy lamentar o estatuto icônico do Taj Mahal, Rushdie espumou: “Este comentário foi apenas o mais recente de uma série de diatribes dela contra a Índia e as coisas indianas”.

Arundathy pergunta se eu gostaria de mais chá. Respondo que não quero abusar e insisto nas críticas à sua militância. Ela esboça um sorriso seráfico: “Ah, santo de casa não faz milagre… Confundem tudo. Nada pode justificar o terrorismo, que é uma ideologia sem coração. Veja o Talibã. Espancam, estupram, apedrejam e infantilizam a mulher. Porém, quando acharam conveniente, os EUA os apoiaram e lhes forneceram armas. O discurso dos governantes americanos são puro Big Brother: ‘Somos pacíficos. Porcos são cavalos. Meninas são meninos. Guerra é paz’.” Obama também entra na dança: “Bush era de uma estupidez obscena. Quanto a Obama, de boas intenções o Inferno está cheio”.

A voz da escritora é doce, mas não melíflua. A amargura e o azedume adejam nas proximidades. A suavidade da dicção acompanha uma retórica inexorável. Os olhos são grandes como os de uma coruja que já viu tudo. As mãos não param de gesticular, que nem um maestro germânico ou um italiano… bem, italianíssimo. Verifico que, com meio século de vida e a antítese do tipo Paris Hilton, Arundathy ainda é uma mulher atraente, apesar do cabelo preso, da testa abobadada. Uma fusão tardia de Jennifer Beal com Halle Berry – menos chocolate e mais jambo.

As objeções à militância de Roy não se restringem a indianos. Estes, e mesmo os que subscrevem muitas das suas posições, assinalam que ela negligencia os efeitos positivos do desenvolvimento econômico do país. Um recente relatório da UNICEF sobre a pobreza no sudeste asiático, quase uma réplica à escritora, indica que “as medidas da Índia para reduzir a mortalidade infantil são uma fonte consistente de esperança.” A conclusão do documento é clara: “Os bons resultados são uma consequência do actual crescimento da economia”. Arundathy não engole essa: “É, eles adoram as torres gémeas da modernidade – o mercado e a democracia….O verdadeiro produto dessa política é a massificação e o fascismo. A democracia é uma fraude.

Sorvo abnegadamente as últimas gotinhas de chá, suando em bica. E, de súbito, ouço a informação que é (ou pode ser…) um arco-íris no fundo do túnel: “Mas estou escrevendo um novo romance… Sem pressa. Afinal, levei cinco anos para acabar O Deus das Pequenas Coisas’

Agradeço a todos os deuses do panteão hindu- o que leva um certo tempo (só os da Primeira Divisão são 22). O suficiente para que me ocorra uma última pergunta: “Pode pelo menos levantar uma pontinha do véu sobre o tema do romance?” Os olhos da autora emitem uma centelha marota: “Ah, uma indiana da gema jamais levanta a ponta do seu sari publicamente.

 

(Texto publicado no nº de Outubro da revista brasileira "Piauí"

publicado por otransatlantico às 17:41
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