Quinta-feira, 23 de Setembro de 2010

A MENSAGEM NUMA GARRAFA

 

Observo a perene  baixaria de Amy Winehouse (nome é destino?) ou Lindsay Lohan e rumino que, no mundo da música e da representação, tudo continua na mesma como a lesma - não faltam nem faltarão ovelhas negras, autodestrutivos compulsivos, dionisiacos feéricos (dependendo do ponto de vista). Já o mundo das letras há muito que anda mais recatado, sobretudo no que diz respeito a molhar a goela. Quem nos viu e quem nos vê.

No dia 2 de Fevereiro de 1821, o bebedor de gim Lord Byron anotou no seu Diário de Ravenna: "Estive pensando sobre o motivo por que acordo sempre a uma determinada hora da manhã, e muito mal disposto. Na Inglaterra, há cinco anos, sofria do mesmo incomodo, só que acompanhado de uma sede tal que cheguei a beber 15 copos de água numa única noite, depois de ir para a cama, sem me sentir saciado. Será o fígado?"

No diário do crítico e ficcionista Edmund Wilson, 130 anos depois, há esta entrada: "Certa noite bebi uma garrafa inteira de champanhe e o resto de uma garrafa de whisky e abri uma outra de vinho tinto - tudo começou pelas cinco da tarde. Adormeci na minha cadeira e quando acordei pensei que já era o dia seguinte. Não jantei e me senti enjoado durante 24 horas." Como assinala Gore Vidal, Wilson não se pergunta se "será o fígado". Ele sabe-o. Tanto que conclui: "Esse tipo de vida, a longo prazo, vai ficando pouco saudável." Pois.

O próprio Vidal fala de um carta que recebeu do então notório escritor Upton Sinclair, confessando-se copofónico e comentando que todos os colegas de ofício que conhecera pessoalmente, entre eles o seu amigo do peito Jack London, tinham - por assim dizer - morrido afogados (mas não em água, seja doce ou salgada). Wilson ainda - com o perdão do trocadilho - se aguentou nas canetas valorosamente, tendo em conta o combustível que ingeria. Já septuagenário, entrava no Princeton Clube com passo vacilante e pedia seis martinis simultâneos (enfileirados na mesa), que ia emborcando enquanto conversava. Ora, quando morreu, aos 77 anos, andava a aprender Húngaro (depois de ter aprendido Russo - para traduzir Pushkin - e Hebraico - para analisar os Pergaminhos do Mar Morto).

Mas foi uma longeva exceção. A maioria dos prosadores alcoólicos arruinou a sua vida ou a sua obra ou ambas. Para ficar só em território americano, a lista é espantosa: Scott Fitzgerald, Hemingway, Faulkner, Eugene O'Neill, Dorothy Parker, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, John Steinbeck, John O'Hara, James Thurber, Truman Capote, Tenesse Williams, William Inge, Elizabeth Bishop, Wallace Stevens, Robert Benchley, Ring Lardner, Thomas Wolfe, Jack Kerouac, Malcolm Lowry, Robert Lowell, James Agee, John Cheever, Ambrose Bierce, Theodore Dreiser, Hart Crane, Edna St. Vincent Millay, Stephen Crane, Jack London e Edgar Allan Poe. Ufa, cansei. E citei apenas aqueles cujo pedigree literário está acima de qualquer suspeita, já referendados por uma dose (ups!) suficiente de posteridade.

Dos sete americanos que embolsaram o Nobel de Literatura, cinco eram alcoólatras: Sinclair Lewis, Eugene O'Neill, Hemingway, Faulkner e Steinbeck. Saul Bellow era judeu e, historicamente, os judeus são parcimoniosos com a bebida (não, não é piada antisemita). Resta Pearl S. Buck - mas, como argumentou alguém, quando ela ganhou o Nobel, o júri sueco é que devia estar bêbedo.

Porquê os autores bebiam tanto? Um acadêmico escreveu uma tese sobre o assunto, intitulada The Alcoholic Republic. Enuncia vários rótulos (psicose maníaco-depressiva, personalidades fragmentadas, esquizofrenia, etc) e desata a colá-los nos escritores. Ora, se Poe, Fitzgerald e Lowry eram esponjas porque sentiam-se fracassados, então Faulkner, Hemingway e Steinbeck deviam enfrascar-se porque eram coqueluches...

Fitzgerald fez uma autocrítica divertida: "Não consigo permanecer sóbrio o tempo suficiente para achar graça em estar sóbrio." Já Faulkner dizia que a única coisa que o chateava no álcool eram os longos ataques de soluço, tão retumbantes que deviam ouvir-se até no imaginário condado de Yaknopatawpha, onde se desenrolam as suas criações. Mas vivia a vomitar sangue, a sofrer estupores (numa festa dada em Paris em sua honra pela editora Gallimard, ele balbuciava qualquer grunhido e recuava um passo, até acabar no jardim, sozinho, onde fazia um frio de rachar), a cair de escadas e de cavalos - uma das quedas provocou-lhe uma trombose fatal. Hemingway, que tinha alucinações, acabou com o fígado visível à distância, protuberante sob a gordura da barriga.

E olhem que Hemingway possuía uma resistência gargantuesca. Bateu o seu próprio record numa noite em Cuba, no bar Floridita, onde foi inventado o daiquiri duplo gelado - double frozen daiquiri, também conhecido como "Hemingway" ou "papa double". Consiste de duas doses e meia de rum Bacardi selo branco, sumo de dois limões e meio, grapefruit e seis gotas de marasquino. Tudo é despejado num liquidificador e batido furiosamente. Naquela noite, Hemingway emborcou 16 papa double - ou seja, 32 doses. Se as testemunhas não mentiram, consta que foi para casa na vertical, usando os próprios pés.

Não foram só americanos, claro. George Simenon bebeu quase tanto como escreveu - o que é torrencial. Consumia, anos a fio, três ou quatro garrafas de vinho por dia ("como se fosse água", conforme explicou), além de um aperitivo antes de cada refeição e de um conhaque para começar a escrever.

E a família de Fernando Pessoa ficou fula com João Gaspar Simões, por o biógrafo ter abordado francamente o alcoolismo do poeta. Como revela outro biógrafo, por vezes a premência de Pessoa era tão aguda que ele saía a galope do escritório, para ir a uma tasca que ficava mesmo ao lado. Robert Brechon destaca que, para o poeta dos heterónimos, a bebida não era um prazer. "Álvaro de Campos não quer saber da qualidade nem mesmo da natureza do que bebe. Fala de 'um vinho de bêbedo quando nem a náusea obsta." Morreu aos 47 anos, de uma crise hepática.

Não formulo julgamentos. Hoje o alcoolismo (como a toxicodependência) é considerado uma doença, cuja causa é ainda imprecisa - se o ambiente, a hereditariedade ou ambas. Com penas aguçadas brandidas, desculpas epigramáticas nunca faltaram. George Jean Nathan, o maior crítico teatral da história dos EUA, sibilou: "Bebo para tornar as outras pessoas interessantes." E Robert Benchley saiu-se com esta: "Dizem que a bebida mata lentamente. Ora, e quem é que está com pressa?"

O grande equívoco - sem caretice - é esquecer que, sem tanto álcool, os escritores teriam escrito mais - e eventualmente melhor. Se teriam sido mais felizes? Bem, isso é uma outra história, e cada uma tem um final.

publicado por otransatlantico às 12:30
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