Segunda-feira, 13 de Setembro de 2010

AGENTE FINO É OUTRA COISA

 

 

Como eu previa, não aqueceu nem arrefeceu (ou, em brasileiro mais cru, não fedeu nem cheirou) A Essência do Mal, o “novo” livro com James Bond, lançado no ano passado. O pai (adoptivo) da criança é Sebastian Faulks, autor de romances históricos “sérios” – o que é irónico, pois as aventuras de 007 sempre foram uma fantasia delirante. Bond nada tem a ver com os contorcionismos éticos, ideológicos e metafísicos dos espiões de Graham Greene, John Le Carré  ou Alan Furst (para não mencionar O Agente Secreto, de Conrad).

Há um enclave tipicamente britânico – e culturalista – naquela estirpe, e não só ficcionalmente: os casos de Burgess, Philby, Maclean e Anthony Blunt (este último um dos maiores críticos de arte ingleses, feito cavaleiro do reino pela Rainha), todos na vida real “toupeiras” soviéticas, falam por si. A lealdade era devida mais ao par, ao “igual”, do que à nação. Como disse o escritor E. M. Foster, que não foi espião nem escreveu romances do género, mas comungava daquele credo: “Se tiver de escolher entre trair o meu país e trair o meu amigo, espero ter a coragem de trair o meu país.”

Fleming era farinha de outro saco. O negócio dele era o evasionismo balsâmico, louvado seja Deus. Nada de dilacerações filosóficas. A escolha de Faulks partiu dos herdeiros de Ian Fleming, o papá biológico do agente com licença para matar.

Jornalista da Reuters e oficial da Inteligência Naval britânica, Fleming nunca foi um espião no terreno, mas ajudou a criar a CIA. Em 1952, decidiu escrever “um thriller para acabar com todos os thrillers”. O nome do herói brotou de uma obra então famosa (ah, a fugacidade das coisas!), O Guia Definitivo dos Pássaros das Índias Ocidentais, de autoria de um agora obscuro, ou eclipsado, James Bond. Já o termo 007 deriva de um conto de Rudyard Kipling.

A fórmula? Vilões mefistofélicos, carros vertiginosos e fálicos, paisagens exóticas e boazonas mazinhas – tudo no pano de fundo, hoje gagá, da Guerra Fria a ferver. Parece trivial, mas contém a alquimia dos mitos.

No cinema, 007 teve vários cabides, mas o seu habitat natural foi um ex-camionista escocês - Sean Connery (acaba de fazer 80 anos) -, que calcificou a alma do agente: taciturno, brutal, sardónico e frio. E mulherengo 25 horas por dia – mas nunca misógino! Como todo o mito, a série gerou uma iconografia: a receita de Martini, o Aston Martin (e epígonos), as Bond Girls (de Ursula Andress – a sair do mar em Doutor No como a Vénus de Boticelli – a Kim Basinger). Um dos charmes da coisa está no erotismo requintado e oblíquo (em vez de boçal).

Em Moonraker, uma nave espacial se prepara para reeingressar na atmosfera da Terra. Quando a imagem via satélite aparece numa tela gigante ao Ministro britânico da Defesa, 007 está a bordo a ofegar e arquejar por cima da Bond-Girl, ambos nus. O ministro resmunga: “Cruzes, que raio ele está a fazer?” O chefe de Bond, “M”, suspira: “Creio que está a tentar reentrar, Sir”. Fleming escreveu as obras na sua casa na Jamaica, denonimada “Goldeneye”. Não me admirava que algumas frases fossem surripiadas ao vizinho, o epigramático Noel Coward.

Os dois eram amigos e assistiram juntos em Londres ao desfile de estadistas na coroação de Isabel II. De súbito, passou majestosamente a carruagem com a rainha do Togo, que diziam ser canibal. Ao lado da monarca, ia um pigmeu rechonchudo. Fleming intrigou-se: “Quem será aquele?” Coward não teve dúvidas: “Ah, deve ser o lanchinho dela!”

Fleming morreu em 1964, de ataque cardíaco, com apenas 54 anos. Acabara de alinhavar Só Se Vive Duas Vezes. Um título equivocado. Pois ele descobrira, se não a eternidade, algo que anda lá perto. Aposto que, quando chegou à porta do Céu, São Pedro pediu-lhe a senha. Canja: “Bond, James Bond”. A casa é sua.

publicado por otransatlantico às 10:52
link do post | favorito
Comentar:
De
( )Anónimo- este blog não permite a publicação de comentários anónimos.
(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 


.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Setembro 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
30

.posts recentes

. ...

. E AGORA, COM VOCÊS, HITLE...

. “CONSIDEREI ESCREVER UM R...

. CLARO QUE ELE ADORA PITBU...

. PASSAGEM PARA A ÍNDIA

. O MESTRE MAGISTRAL

. MACACO É A SUA AVÓ!

. A MENSAGEM NUMA GARRAFA

. ALTA COSTURA E ALTA CULTU...

. AGENTE FINO É OUTRA COISA

. TREVAS AO MEIO-DIA

. ALICE NO PAÍS DAS MARAVIL...

. O TABACO SALVA!

. PINTAR O INSTANTE

. LEVANTADO DO CHÃO

. VAN GOGH PINTAVA O CANECO

. FAMA E INFÂMIA

. CASAIS DE ESCRITORES: PAL...

. O DONO DA VOZ

. LIVROS? DEUS ME LIVRE! 1 ...

. CHURCHILL E OS CHARUTOS

. O IMPACIENTE INGLÊS

. ENTREVISTA JAVIER CERCAS

. OSLO QUEBRA O GELO

. O APOLO DIONISÍACO

. O PAI DO SNOOPY

. O CACHIMBO PENSANTE

. ÇA VA?

. TRÊS ALEGRES TIGRES

. O ARCANJO OBSCENO

. RESORT 1 ESTRELA (NO PEIT...

. JACQUES, LE FATALISTE

. HITLER, MEU AMORZINHO

. O ETERNO RETORNO DO ETERN...

. ENTREVISTA: ALI SMITH

. O BARDO DO FARDO E O TROV...

. A MÚSICA DAS ESFERAS IV

. ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA D...

. SEXO E OUTRAS COISAS EMBA...

. ALI E ALÁ

. VIVA LA MUERTE?

. O BELO MALDITO

. REPERCUSSÃO DESTE BLOG!

. DEBAIXO DO VULCÃO

. PUSHKIN, O EMBAIXADOR E E...

. A ÚLTIMA CEIA DO MODERNIS...

. MAILER, VIDAL, CAVETT

. O REI DESTA SELVA VAI NU

. QUEM TEM K SEMPRE ESCAPA

. ENTREVISTA UMBERTO ECO

.arquivos

. Setembro 2011

. Abril 2011

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

.tags

. todas as tags

.links

.subscrever feeds