Domingo, 8 de Agosto de 2010

O DONO DA VOZ

 

 

 

 

 

 

 

Aleluia! Hosana! Iuuuuupiiiiiiiii! Saiu o messianicamente aguardado The Man, the Music, The Legend, coletânea de ensaios de sumidades internacionais que canoniza Sinatra como o maior rouxinol mamífero de todos os tempos. Destaco um aspecto: a sua volta por cima.

Em 1953, o desgraçado comia o pão que o diabo amassou. A Columbia demitira-o com um pontapé nos fundilhos (depois de o obrigar a cantar até com um cão). Programas de rádios e TV? Cancelados para aquela persona non grata oficial. Nas casas noturnas, cantava para mesas vazias, e até as toalhas bocejavam (os copos viravam-lhe as costas, se conseguiam encontrá-las). A MGM rasgara-lhe o contrato como ator. O jornal Variety publicou um anúncio do seu agente, a mandá-lo pastar, lamber sabão, pentear macacos – só faltaram publicar a participação da sua missa de sétimo dia.

A relação com Ava Gardner esfarelava-se : sem que ele soubesse, ela se esgueirava rumo a Londres, para abortar um filho dele. Por que Sinatra não se matou, como qualquer pessoa no seu juízo perfeito teria decidido – por muito menos, aliás? Porque já não se faziam comprimidos como antigamente. Tudo o que conseguiu ao emborcar o frasco com uns 500 ansiolíticos (uma dose capaz de fulminar um brontossauro) foi uma azia vulcânica e mais um escândalo. Jurou que para a próxima serraria os pulsos.

Ava está para os fãs de Sinatra como Yoko Ono para o de John Lennon (fisicamente, claro, as duas eram respectivamente como a Bela e o Monstro). Jean Cocteau descreveu Ava como “o mais belo animal do Mundo” – e, se Cocteau, que não era consumidor do produto, achava isso, calculem Sinatra, que não podia ver rabo de saia sem pôr as manguinhas (e tudo o resto) de fora.

Nancy, então esposa do cantor e mãe dos seus dois filhos, encolheu os ombros: a sirigaita não tinha dotes de dona de casa, e jamais engomaria e dobraria as meias de Sinatra como ele gostava, arrumando-as na gaveta quase que por ordem alfabética!

Mas impedir aquele romance era como arrolhar o Vesúvio. Não durou muito, mas foi um sol da meia-noite, ou uma aurora boreal. Como disse Ava: “Éramos o máximo na cama, mas as brigas começavam a caminho do bidé”. Ela odiava os amigos de Frank, que, depois de tomarem todas, se deitavam de sapatos enlameados na cama do casal, depenavam o frigorífico, falavam de boca cheia e apalpavam os testículos com as duas mãos, como almofadas anti-stress.

Mas Ava pelava-se por toureiros, como o homérico Dominguin – quando a diva pousava em Madrid, os touros acordavam banhados em suor, cientes de que perderiam as orelhas, o orgulho e a vida, não necessariamente por esta ordem. Humphrey Bogart ralhou com Ava: “Metade das mulheres da Terra quer praticar o Kama-Sutra com Sinatra, até decorar tudo na ponta da língua. E preferes esses tipos em collants (meia-calça) e sapatilhas de bailarina!”

Resultado: Frank cumpriu a promessa, esgrimindo umas gilletes com um gume de guilhotina. Mas um amigo ligou para o 112 e safou-o da poça de sangue. Teimoso como uma mula enamorada, Sinatra parou de comer. Num ano a pão e água, chegou aos 48 quilos – parecia um holograma de si próprio. Aí, preferiu viver. Embolsou o Oscar de melhor ator e gravou a celestial série de discos da Capitol – uma Suma Frankológica, com excruciantes ‘torch songs’ (canções de fossa), de uma vulnerabilidade viril.

Um minuto de silêncio, por obséquio. Foi a última vez na história que os gostos da elite e das massas coincidiram.

 

publicado por otransatlantico às 16:35
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