Domingo, 1 de Agosto de 2010

ENTREVISTA JAVIER CERCAS

 


 

 

«O ESCRITOR NÃO PODE SER COBARDE»

 

Javier Cercas lançou em Portugal «A Velocidade da Luz», o primeiro romance depois do fenómeno «Os Soldados de Salamina», aclamado pela crítica internacional e com mais de um milhão de leitores só em Espanha. Após “A Velocidade da Luz” vieram “A Verdade de Agamemon” e “Anatomia de un instante”, este eleito o melhor romance espanhol de 2009 pelo suplemento cultural do “El País”, o “Babelia”.

 

 

 

 

Apesar da excelência dos livro anteriores, como «O Inquilino», Javier Cercas somente se tornou uma celebridade em Espanha – e a seguir no mundo – com a publicação do romance «Os Soldados de Salamina», em 2001. Esta obra, apadrinhada por Vargas Llosa, conquistou vários prémios cobiçados, vendeu 1 milhão de exemplares apenas em solo espanhol e está traduzida para mais de 20 idiomas. O livro foi também adaptado para o cinema, por David Trueba (o irmão mais novo de Fernando Trueba). Curiosamente, há sete anos Javier Cercas, na condição de jurado, ajudou a atribuir o prémio Cervantes de 2003 a Rafael Sanchez Erlosio, filho de Rafael Sanchez Maza, falangista histórico e personagem principal de «Soldados de Salamina». A publicação do romance seguinte de Cercas, finalmente intitulado «A Velocidade da Luz», gerou em Espanha enorme expectativa. No meio da sua composição, o escritor chegou a pensar em renegar o projeto, questionando a sua própria legitimidade para escrever sobre a Guerra do Vietname (um dos panos de fundo do livro). Foi então que Susan Sontag (autora do ditirâmbico prefácio da edição americana de «Soldados de Salamina») o encorajou a persistir, num jantar em Barcelona. Provavelmente, um dos juízos mais sensatos da falecida ensaísta.

 

 

 

Paulo Nogueira: Depois do sucesso estrondoso de «Soldados de Salamina», sentiu-se pressionado para escrever o romance seguinte? Por si mesmo e pelos outros? Sentiu medo? Talvez de si próprio?

Javier Cercas: Não, medo de mim não senti. Talvez uma certa vertigem… Afinal, este livro se chama «A Velocidade da Luz» (risos). Não, definitivamente não. Quando começa a escrever, o autor está sempre só, e não há nada a fazer senão seguir em frente. Todos os romances são exorcismos, e este não o foi mais do que os anteriores.

PN: Mas creio que chegou a falar em «artilharia da crítica» e em «espadas desembainhadas»...

JC: Na verdade, foi o meu editor quem sugeriu que este romance se intitulasse «Esperam-te Com Toda a Artilharia». Segundo ele, depois de um sucesso internacional há sempre muita inveja, e algumas pessoas, enfim, querem ver sangue… Mas, em última análise, em Espanha a crítica foi muito mais elogiosa em relação a este romance do que a «Soldados de Salamina», que passou quase despercebido…

PN: Apesar do artigo laudatório de Mário Vargas Llosa?

JC: Ah, isso foi mais tarde. Já tinham saído as críticas todas. Mas, claro, os críticos tem que fazer o seu trabalho – e alguns são bons e outros são maus, como os escritores. Quanto a mim, até a «Os Soldados» os meus livros tinham cerca de três mil leitores, e os «Soldados» vendeu centenas de milhares. Daí que tenha surgido uma expectativa normal, mas um escritor deve ser valente. Não pode ser cobarde. Na vida pode ser cobarde, mas diante do computador não tem esse direito. Senão, dedique-se a outro ofício. Um escritor cobarde é como um toureiro cobarde – uma contradição nos termos. Claro que um êxito assim, repentino e inesperado, acentua a nossa tendência a autodestruição. Mas não pretendo ser cabotino a ponto de dizer que um sucesso não é bem-vindo. O nosso banqueiro, por exemplo, fica radiante (risos). A sério: no mínimo, significa que gostaram do seu trabalho, o que é bom. Cada vez que um leitor abre o nosso livro e o lê, o livro cresce. Um clássico é aquele livro que se lê até hoje, que nunca parou de crescer.

PN: - Mas o sucesso nem sempre é sinónimo de qualidade literária…

JC: Claro que não! E depende do que se entende por sucesso. A única forma de se entender seriamente o êxito é a forma como o escritor escreveu o seu livro. Se tem mais ou menos leitores, não passa de uma casualidade. Há autores fundamentais que nunca tiveram nem nunca terão milhões de leitores. Kafka, por exemplo… Ou Joyce. E no entanto também é tolice pensar que só os romances que venderam pouco são grandes obras. Há romances magníficos que foram e provavelmente continuarão a ser amplamente lidos, como os de Dickens. Ou Cervantes - «Dom Quixote» foi um best-seller já no seu tempo. Não há nenhuma regra, e o êxito seguramente não testemunha nem o mérito de um livro nem a falta dele.

PN: Num romance de Italo Calvino, dois romancistas vizinhos, cada um na sua casa, se observam um ao outro, sem o saberem. Um, celebrado pela crítica, inveja o sucesso comercial do segundo. Este, por sua vez, inveja o prestígio cultural do primeiro. Como se sente, tendo obtido ambas as coisas? Bem, suponho…

JC: Sinto-me um privilegiado. Mas você devia completar essa cena, que é magistral, de um livro que admiro e li muitas vezes. Os dois propõem-se a escrever um romance para agradar a uma terceira vizinha, que é a leitora e está equidistante. O escritor de êxito comercial quer escrever uma obra como a do vizinho que tem o apreço da crítica – e vice-versa. Pois ambos crêem que a leitora está a ler um livro do outro. O que Calvino pretende dizer é que se trata de um falso dilema, tal distinção entre o bom escritor que é desconhecido e o mau escritor que é idolatrado pelo público. De novo, não há regras. É uma história perversa.

PN: Nos «Soldados de Salamina», a Guerra Civil espanhola. N ‘«A Velocidade da Luz», a Guerra de Vietname. Mas fala menos dos conflitos que dos seus fantasmas…

JC: Sim. Não são tanto os homens que passam pelas guerras, como as guerras que passam pelos homens. O tema da guerra interessou-me sempre, literariamente – afinal, é o primeiro tema da literatura, com Homero. Os homens julgam que, na guerra, descobrem aquilo que são. Mas quando escrevo um livro é para solucionar um problema que coloquei a mim próprio, como um teorema. Ou seja, por perplexidade. Claro que, no final, não há solução. Ou melhor, a solução é o próprio processo do romance. Porém o essencial escapa-nos sempre.

PN: A questão autobiográfica n’ «A Velocidade da Luz» é labiríntica. «Parece-se comigo, mas não sou eu», diz o escritor-personagem sobre o protagonista de um romance que está a escrever no seu romance. Como no conto de Edgar Allan Poe, «A Carta Roubada», esconde-se mostrando-se?

JC: Perfeito. É exactamente o que eu diria. Nietzsche disse a mesma coisa mas de outra maneira: falar muito de si mesmo é a melhor forma de ocultar-se. Como a personagem dos filmes de Woody Allen não é Woody Allen – acreditamos que sim mas estamos enganados. O protagonista de «Velocidade da Luz» é uma máscara – e uma máscara revela-nos ao mesmo tempo que nos dissimula. Nesse sentido, é talvez mais profundamente eu do que eu próprio… É um Eu concentrado, uma essência.

 

(Entrevista publicada no suplemento Atual, do semanário Expresso)


publicado por otransatlantico às 20:33
link do post | favorito
Comentar:
De
( )Anónimo- este blog não permite a publicação de comentários anónimos.
(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 


.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Setembro 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
30

.posts recentes

. ...

. E AGORA, COM VOCÊS, HITLE...

. “CONSIDEREI ESCREVER UM R...

. CLARO QUE ELE ADORA PITBU...

. PASSAGEM PARA A ÍNDIA

. O MESTRE MAGISTRAL

. MACACO É A SUA AVÓ!

. A MENSAGEM NUMA GARRAFA

. ALTA COSTURA E ALTA CULTU...

. AGENTE FINO É OUTRA COISA

. TREVAS AO MEIO-DIA

. ALICE NO PAÍS DAS MARAVIL...

. O TABACO SALVA!

. PINTAR O INSTANTE

. LEVANTADO DO CHÃO

. VAN GOGH PINTAVA O CANECO

. FAMA E INFÂMIA

. CASAIS DE ESCRITORES: PAL...

. O DONO DA VOZ

. LIVROS? DEUS ME LIVRE! 1 ...

. CHURCHILL E OS CHARUTOS

. O IMPACIENTE INGLÊS

. ENTREVISTA JAVIER CERCAS

. OSLO QUEBRA O GELO

. O APOLO DIONISÍACO

. O PAI DO SNOOPY

. O CACHIMBO PENSANTE

. ÇA VA?

. TRÊS ALEGRES TIGRES

. O ARCANJO OBSCENO

. RESORT 1 ESTRELA (NO PEIT...

. JACQUES, LE FATALISTE

. HITLER, MEU AMORZINHO

. O ETERNO RETORNO DO ETERN...

. ENTREVISTA: ALI SMITH

. O BARDO DO FARDO E O TROV...

. A MÚSICA DAS ESFERAS IV

. ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA D...

. SEXO E OUTRAS COISAS EMBA...

. ALI E ALÁ

. VIVA LA MUERTE?

. O BELO MALDITO

. REPERCUSSÃO DESTE BLOG!

. DEBAIXO DO VULCÃO

. PUSHKIN, O EMBAIXADOR E E...

. A ÚLTIMA CEIA DO MODERNIS...

. MAILER, VIDAL, CAVETT

. O REI DESTA SELVA VAI NU

. QUEM TEM K SEMPRE ESCAPA

. ENTREVISTA UMBERTO ECO

.arquivos

. Setembro 2011

. Abril 2011

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

.tags

. todas as tags

.links

.subscrever feeds