Domingo, 25 de Julho de 2010

O CACHIMBO PENSANTE

 

 

 


Esta semana, em Londres, uma ampla pesquisa revelou: 58% dos entrevistados crêem que Sherlock Holmes foi um genial detetive que existiu de verdade. Ora, durante a sua vida (acaba de sair a biografia definitiva e a edição completa da correspondência), Conan Doyle recebeu centenas de cartas a solicitar os serviços da personagem, várias brandindo fortunas mirabolantes como soldo. Não admira a longevidade da criatura, equivalente a de Dom Quixote. Em um Mundo em que a insegurança e a angústia reinam, Holmes é um bálsamo: nem sempre evita o crime ou pune o criminoso, mas sempre nos explica que diabo aconteceu, como e porquê. Foi Pascal quem definiu o Homem como "um caniço pensante" - também quem confessou estremecer de pavor ao imaginar "o espaço vazio entre as estrelas"...

Se Sherlock é a quintessência da lógica indutiva, o doutor Watson corresponde a mais prosaica banalidade – porém, cheia de retidão e lealdade edificante. O par de Baker Street é como aqueles casais felizes cimentados pela atração dos opostos. Ou, para invocar de novo Cervantes, como Quixote e Sancho (neste caso, o delírio substitui a razão). Enquanto Watson lia o horário dos comboios (trens) ou atiçava a lareira, Holmes consumia cocaína, tocava violino ou espremia os miolos.

O próprio Conan Doyle era uma síntese instável daquelas antíteses. Escocês de Edimburgo, licenciou-se em Medicina, mas sem vocação e com fascínio pela aventura: pairou de balão pelo céu e conduziu carros e motos quando estes não passavam de geringonças excêntricas. E fervilhava de ambiguidades: autor do cerebral Holmes (com o seu método cartesiano da navalha de Ockham), converteu-se ao Espiritismo e escreveu livros a defender a comunicação com Gasparzinhos. Lembra sir Isaac Newton, o descobridor da gravitação universal, que dedicou mais tempo a Alquimia do que à Física…

Inopinadamente, Doyle acabou por odiar Holmes (que o enriquecera e imortalizara) e decidiu “matá-lo”, na obra “O Problema Final”. A reação do público foi de histeria coletiva: houve até cortejos fúnebres nas ruas de Londres. O escritor resistiu às pressões por dez anos, mas lá ressuscitou o detetive de lupa desembainhada.

Atenção: a célebre frase “Elementar, meu caro Watson!”, NÃO figura em nenhuma das 70 narrativas protagonizadas por Holmes – só nas miríades de adaptações para cinema e TV.

Ah, agora que o mistério Doyle/Holmes está deslindado, desopilemos. Eis um exemplo paródico da lógica indutiva. Holmes e Watson estão a acampar. De madrugada, Holmes acorda Watson: “Olhe para o céu e diga-me o que vê”. Watson: “Vejo milhões de estrelas”. Holmes: “E que conclui?” Watson: “Que existem milhões de galáxias. Que Saturno está em Leão. Que serão três e um quarto da madrugada. Que amanhã teremos um dia lindo. Que Deus é Todo-Poderoso e nós insignificantes. E você, o que conclui, meu caro amigo?” Holmes: “Watson, sua besta, roubaram-nos a tenda!”

 

(Crônica publicada na REVISTA DE DOMINGO , do Correio da Manhã)

publicado por otransatlantico às 11:40
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